Reticências

         

                                                                    I- Mar

     Corta os punhos, a mulher desavisada do triste destino.

    Como uma lenda triste, a mulher arrebenta os dedos na parede em sinal de discórdia consigo mesma. Vive na prisão de um amor sem rumo, um relógio sem ponteiros, uma estrada sem horizonte.

    Um dia a mulher de dedos arrebentados cruzou a linha do horizonte e não voltou. Bebeu água salgada antes de auto-afogar-se no mar; antes de rascunhar seu suicídio de sal.

    A mulher tonta estava com seus punhos serrados logo depois da areia e antes de deitar-se sobre as ondas e deixar-se morrer, algo suave e sutil a derrubou. Avesso ao que ela queria, o mar  cuspiu seu corpo para fora da água e mesmo com pulmões molhados, a mulher de meio pulso se obrigava agora a respirar. Um sopro de vento ancorou sob sua pele quase afogada e ela precisou recobrar os sentidos há pouco levados pelo mar mas devolvidos pelo mesmo. Estava com o corpo frio; quase trêmula. Como um orgasmo ao avesso ela sentiu de repente, a areia a queimar a sua pele. A areia em chamas sob suas costas molhadas fazia com que o frio de quase morte se fundisse com a quentura do sobreviva…

Há de se recobrar os sentidos antes que o último suspiro da alma se afogue…

Há de se encher o caderno de poesia antes que a última metáfora se mova…

Há de se sentar do alto de um morro para olhar o horizonte e assimilar a imensidão do quase silêncio…

Há de se esgueirar pela fresta e espiar a ultima planta para recordar-se da vida.

                                                                                                     II Portais

Feito furacão a mulher invade a chuva com suas malas feitas de recordações aos pedaços. Não havia mais cola para juntar as missangas caídas e espalhadas no chão. – Conte! – disse a mulher nas portas do inferno transformando sua fúria em uma metáfora dentro do bairro pobre e todo alagado.                                                  Naquele dia juntou seus medos e o demônio ficou contando o estrago que a mulher fez na entrada do pesadelo. Dizem que o diabo  arranhou seu ego na saída, quando tentou buscá-la  para queimar-lhe a pele com seu mal ânimo. Naquele dia rompeu as barragens, quebrou os cadeados. Não havia lógica ao sair na chuva e a chuva alagou todos os cantos em torno da mulher cheia de medo corroído de coragem. Ela seguiu sua marola de fé. Já não havia o que colar. Todo rompante de dor no seu peito agora quebrara de vez e ela resolveu, ao seu modo, dar a tudo um rompimento final.

 

Hoje

Hoje as tulipas vermelhas estão cor de cactus

Cheias de espinhos dormentes…

Hoje o ponteiro

E o relógio

Correram inversos

Ao verso

que aqui jaz…

 

 

Hoje a lágrima desceu pálida

E a pele descascou levemente.

 

Hoje a densidade das marés repuxou o mar inteiro

E o amor que se mantinha

I

N

T
E
I
R
O

Veio e desaguou…

 

Hoje um cálice caiu trincado

E a poesia

riscada

Toda  se redesenhou

 

Agora

Sinto a brisa ligeira de uma breve sensação

 

Hoje a paisagem se retirou do horizonte

E reescondeu meu coração

 

Hoje

Tenho o frio,

Reinvento.

Solto meu cabelo no vento

E o meu olhar na solidão

Call Center “Bogotá-Brasil”

Eganoso EU “sujeito” Brasileiro

Bárbara Trelha

Sujeitar-se às barbáries cotidianas e abusos tantos têm sido uma realidade imposta a nós, maior parte dos ‘sujeitos’ (do) ao Brasil.

 

O sonho americano nos ronda sem que ele seja sequer nosso. Não só ele mas as aspirações eurocêntricas de passar férias em Paris e ir à uma igreja em Roma. Essas vontades importadas não sei de quem estão espalhadas por toda parte. Estão, por exemplo, no pé do garoto da favela, representadas no símbolo da Nike do tênis fabricado na China trazido via fronteira do Paraguai para embelezar um pé na base do ‘falsifics ‘, remediando assim a necessidade do cidadão de TER- embora saibamos que no cerne da sua compra deseja apenas SER. E o queremos ser?

Lembrei agora, como que cena de filme em que entra trilha sonora,  da canção “SOMOS QUEM PODEMOS SER”. Nela, escuto ” A vida imita o vídeo /Garotos inventam um novo inglês/ Vivendo num país sedento/ Um momento de embriaguez”.

E nessa coisa de somos quem podemos ser eu começo o objetivo desse texto:

REFLETIR SOBRE AS REAIS FRONTEIRAS CULTURAIS

Brasil X Colômbia começa, na história de todo brasileiro comum, num jogo de futebol. Não somos instruídos a saber mais sobre a Colômbia, que sua geográfica demarcação fronteiriça no mapa. Não há espaço no nosso currículo para sabermos sobre a ‘Cultura Andina’ ou outra similar  porque precisamos decorar como o brasil foi descoberto, sobre o que é a União Européia e sobre as datas todas durante a Revolução Russa. Sabemos sobre peculiaridades de Napoleão Bonaparte mas não sabemos  o peculiar detalhe que o Cajon (tão usado na música Hispânica) é de origem Peruana.

Comecei meu contato com a cultura latino americana pela música. Na vontade ter ter folga mental de teorias musicais que analisam repertórios clássicos ou de estudar a música popular brasileira, resolvi por dois anos consecutivos, estudar a música Latina. Primeiro a música Boliviana e depois a da Venezuela. Algumas descobertas extraordinárias sobre esses lugares como por exemplo, a existência de um carnaval diferente, cheio de sonoridades; a divisão ternária da música venezuelana e suas melodias com marcações rítmicas difíceis de serem cantadas, sobre a delicadeza e forma respeitosa de entender a cultura e produção de flautas feitas pelos artesãos andinos, protegidas por lei na Bolívia como Patrimônio Cultural.  Esbarrei com uma riqueza cultural nada prepotente, nada pobre, muito bela. Isso não desfez meu encanto com o velho continente e suas histórias medievais, mas me acordou para um logo ali… antes do oceano.

Depois dos jogos de futebol e dos dois cursos, um garoto Colombiano bonito  e simpático num Hostel em Bota fogo no Rio de Janeiro, me disse que Brasil e a Colômbia se pareciam. Não vi nele um garoto latino-americano, mas um jovem como eu. Já eu, estranhamente, não me sentia como ele, uma jovem garota latino-americana.

Ainda no curso sobre música Boliviana,  estudei que na Bolívia, na época da colonização, houve um movimento de música barroca que incorporou aspectos sonoro-musicais locais. Eram missas católicas registradas como de autoria de padres europeus, executadas com tambores indígenas. Tudo soando junto às estruturas  operísticas barrocas nos moldes clássicos europeus. Nessa escuta, uma harmonia singular e alguns paradigmas sonoros e culturais sendo instaurados na minha curiosidade.

Mas essa semana fui invadida pela Colômbia!  Não foi em nenhum curso de música Colombiana. Foi um brasileiro que me inseriu Bogotá no campo de visão e resultou nesse texto cheio de referências e reflexões.

Tudo começou quando eu liguei para na Assistência de um site, para saber detalhes sobre o domínio que eu havia comprado. Sobre o domínio deste site intitulado “ensaiosliterarios.com”.

Na minha falta de habilidade com as tecnologias, sempre ligo e tento “ouvir via voz” a informação da qual preciso. Liguei em um telefone fixo com código  (011).  Na conversa, um atendente de call center comum começou a me dar algumas instruções sobre redefinição de senha. Tranquilo, esperava minha inábil cotidiana lentidão com as tecnologias. No meio das tentativas, comentei a ele o quando eu odiava ter que fazer e refazer senhas. O quanto não gostava de tecnologias e ele ria descontraído da minha espontânea forma de falar.  Resolvi furar o protocolo e perguntar de onde ele falava. Em geral pelo sotaque eu identifico a região de onde a pessoa é, mas ali não dava para saber. O que me chamou atenção, era sua forma leve de me atender. Acostumada com tratamento semi robótico e verbetes prontos típicos de atendentes de call center de empresas de telefonia,  fiquei curiosa e perguntei:

-De onde vocë fala?

Ele respondeu prontamente me gerando surpresa:

-De Bogotá!

-Bogotá, Colômbia? – Pergunto eu ainda ” encafifada” com a resposta.

-Sim, falo da Colômbia.

Daí em diante foi impossível não conversarmos mais sobre outras coisas. Quando ele pediu que eu testasse o site para verificar se estava ativo, aproveitei e divulguei a ele meus textos contando o motivo de  ter criado esse espaço.  Também contei a ele sobre a origem de alguns escritos meus publicados no site como ” O Anjo Caído”. Resumi a ele o que do texto era ficcional, e o que do texto era verdade.  Expliquei a ele que o meu conto ” Chuva de Brinquedo” era uma narração auto-biográfica e nada tinha de ficção. Ele foi identificando os textos e parecendo agradar-se disso. Me contou sobre a calma que é morar em Bogotá. Que há segurança e tranquilidade. Falou de como a cidade gira em torno dos cachorros, que as pessoas e seus cães passeiam o tempo todo. Ao fim da gostosa conversa esqueci apenas de perguntar seu nome, mas comentei a ele que talvez escrevesse um texto  sobre nosso encontro.

Antes de iniciar essa escrita, e a narração desse inusitado encontro via call center, senti que precisava ler algo mais sobre Bogotá e cães, Colômbia e  Brasil, algo que me desse uma dimensão mais real desses legares e imagens novas que eu criava na mente enquanto conversava com o atendente. Na minha breve pesquisa, encontrei muita coisa falando sobre drogas, atividade de tráfico na fronteira, mas nada das coisas que eu queria saber: O que de comum esses lugares possuem.

Então em meio ha várias leituras ( um luxo de pré-férias), eu esbarrei em um texto em espanhol muito interessante. Separei um pedaço dele pra ilustrar esse texto,  “roubei” dele uma imagem da Colômbia que gostei, e acrescento por fim a música que me assaltou o instante enquanto fazia essa escrita. Fico por aqui compartilhando que …

                  O inusitado nos atordoa, assalta e nutre o cotidiano,                                               

                     desde que a gente esteja aberto para ele.                                  

Se somente lermos revistas comuns e assistirmos programas formatados de televisão, vamos sempre imaginar lugares não-lugares, pessoas não-reais, sujeitos não-sujeitos e cultura não-cultura. E apesar de mais epistemológico e poético que eu, Sicerone ( autor do artigo abaixo),  na excelente revista “Reflexiones Marginales” ( ISSN 2007-8501), discorre muito mais a fundo algumas questões do sujeito em seu lugar e e em seu não-lugar, do que eu.

Vale a leitura mais do  que do meu texto ensaístico, metido a jornalístico.

Segue o trecho, a referência e uma canção para adornar essas reflexões pré-férias:

” El problema surge cuando queremos reconocer qué sujeto es el que debería llevar a cabo tal empresa revolucionaria. ¿Será el proletariado como expresión de la negatividad del capital en su concepción fenomenológica? ¿Será una multiplicidad de sujetos que compartan la marginalidad? Creemos que hay que suplantar el concepto de sujeto, el cual trae consigo una concepción metafísica del mismo, es decir, se le otorga una cualidad a-histórica y des-contextualizada. Por ello, suplantamos el concepto de sujeto por el de cuerpo, ya que es el cuerpo el elemento que permite definir la ocupación de espacios en la vida social. Son los cuerpos los que bailan, los que se mueven, los que mueren, los que nacen, los que corren, los que nadan, los que sufren, los que se someten a las barbaridades de la vida en la sociedad capitalista, los que fueron sometidos y traídos en barcos desde otro continente para suplantar a los indios que no resistían la barbarie colonizadora de la voluntad de poder que exterminaba en aras de alimentar el monstruo del capitalismo naciente, manchado de rojo sangre por el accionar de los conquistadores que justificaban las matanzas en la creencia de un Dios todopoderoso, pero blanco y europeo, como europeo lo fue Adán y Eva.” ( DANIEL SICERONE)

Texto na íntegra em:

Posibilidades y emergencia de una izquierda libertaria-dionisíaca en América Latina

Somos quem podemos Ser

Engenheiros do Hawaii


Um dia me disseram
Que as nuvens não eram de algodão
Um dia me disseram
Que os ventos às vezes erram a direção
E tudo ficou tão claro
Um intervalo na escuridão
Uma estrela de brilho raro
Um disparo para um coraçãoA vida imita o vídeo
Garotos inventam um novo inglês
Vivendo num país sedento
Um momento de embriaguez

Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter

Um dia me disseram
Quem eram os donos da situação
Sem querer eles me deram
As chaves que abrem esta prisão
E tudo ficou tão claro
O que era raro ficou comum
Como um dia depois do outro
Como um dia, um dia comum

A vida imita o vídeo
Garotos inventam um novo inglês
Vivendo num país sedento
Um momento de embriaguez

Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter

Um dia me disseram
Que as nuvens não eram de algodão
Sem querer eles me deram
As chaves que abrem essa prisão

Quem ocupa o trono tem culpa
Quem oculta o crime também
Quem duvida da vida tem culpa
Quem evita a dúvida também tem

Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter”

Espera

Esperar o domingo passar

Esperar a chuva

A nuvem desencostar

Esperar…

 

E não cessa

Essa minha morna espera

âmbar

de me andarilhar

 

Na lágrima

Só prevejo a minha espera  a escorregar

 

Quando eu acordar no meio do rio

Que as águas da minha espera

Estejam a aflorar

Que o amor do passado esteja longe

Que não me tenha levado nenhum pedaço

castanho

de olhar

E que não reste nenhum reflexo

Dessa dor da espera

de mais um amor a me atravessar….

 

O Anjo Caído

Desenho-Geovania Ramos

A expressão “ anjo caído”, ao mesmo tempo que evocava ideias do divino, lembrava da possibilidade da queda.

Nessa história o anjo acordou num sábado e, como de costume, espiou sua protegida trocar de pijama na frente do espelho. Ela gostava de colocar uma peça de algodão branca, desembaraçar os cabelos com os dedos e amarrá-los descontraidamente. Tinha um nariz delicado, uma pele branca. Seus cabelos frisados davam a ela ares de princesa medieval e-longe das batalhas- o anjo tratava de cuidar do seu destino. Ela era sutilmente silenciosa. Silenciava quando estava contemplando as coisas da vida. Em outros momentos ela falava e cantava. O anjo aproveitava esse momento para dar uma descansada, pois quando a moça  “hablava de sus cosas”, era porque estava bem. Naquela tarde já se ia o sol no horizonte da cidade onde ela morava. Ela estava inquieta em seu silêncio, naquele dia cheio de discórdia. Não fumava, mas se fumasse teria acabado com todos cigarros. Roeu as unhas, tentou desenhar, pintar, tecer umas linhas, mas nada tirava dela aquele ruído interno. O anjo desde cedo estava às pressas em torno dela. Já tinha ido aos céus consultar o oráculo, já tinha ido também à horta, buscar um chá de Santa Maria. Já tinha ido atrás de algum ingrediente que  pudesse espalhar na aura da moça para tirar-lhe daquela angústia.

Naquela noite, demasiadamente raivosa e angustiada ela desaguou suas coisas não ditas. Levantou do sofá e, em direção ao homem que amava, despejou nele toda densidade contida no seu silêncio. Assustado e austero, ele ergueu a voz arregalando seus olhos azuis e,  sem seu habitual sorriso, a enfrentou com a face áspera. Aquele era um momento de tempestade. Ela descarregou nele seus raios, trovões, desafiando  aquele  homem a despedir-se de amá-la. Após rompantes de ambos os lados, ele afastou-se, saindo porta afora. Ela sem forças, não o seguiu. Ele precisava calar até que a maré voltasse à calma.

Quando ele saiu ela calou. Reparou que suas águas tinham se agitado além do desejável. Temeu que ele fosse embora para sempre. Nessa hora seu corpo exausto a lembrou que era frágil. Nessa hora olhou em torno de si e reparou nos filtros de sonho que fazia e desejou passar por ali… Depois olhou para a porta com espera. Lembrou que mesmo as grandes embarcações naufragam. Sentiu medo que o homem que amava não voltasse.

Enquanto isso o anjo, já tonto com a tormenta, foi tentar um último voo em torno da moça. Ele tropeça no lustre da sala e cai. Bem em frente a uma mesinha, fica caído com as asas arranhadas. Olha em torno de si e repara um maço de cigarros abandonado. Percebe à sua direita uma garrafa de whisky. Olha a moça quieta quase adormecida. Sem resistir muito, fuma todos os cigarros, bebe a garrafa de whisky e desmaia de cansado. E ficam ali- caídos- os dois.

O homem retorna.  Ao abrir a porta repara na calmaria típica de manhã pós- tempestade.  Acaricia os cabelos frisados daquela que era sua particular princesa medieval, repara na falta dos cigarros na carteira e estranha a garrafa vazia. Observa ao redor e percebe que sobre a mesinha tem um anjo caído, com cigarros amanhecidos nos dedos e a garrafa na mão. Reconhece a dádiva de ver um anjo. Sabia que não há nada de comum em econtrar um no anjo da guarda, mesmo que caído. Poder vê-lo, causava-lhe um encantamento sutil. Extasiado com tamanha arte, o homem tira do bolso uma máquina e arranca do anjo um retrato. Guarda a foto e fica ali mesmo, deitado ao lado de sua moça. Ele sabia que no dia seguinte ela acordaria linda, amarraria os cabelos, colocaria sua camiseta de algodão branca e iria até a janela olhar o tempo. O homem só desejou que aquela chuva passasse como um mar abraçado com o horizonte. Ele mesmo a guardou até o amanhecer do dia.

Conta a história, que o retrato ficou guardado em seu bolso. Contam que o homem-de vez em quando- ainda olha o retrato do anjo,

… só para lembrar das coisas do divino.

Chuva de brinquedo

 

Por: Bárbara Trelha

Era uma vez uma manhã fria…

aquarela

A trilha estava difícil e a neblina fechava a visão. Eu não queria   que aquele trajeto acabasse mas ao mesmo tempo rezava que logo déssemos de cara com acampamento onde todos nos esperavam. Não sei quando comecei a pensar na minha infância, pois muitas coisas rondam a minha cabeça. Eu, toda vez que ando, visito algumas lembranças, redesenho seus desfechos e sempre fiz isso, desde criança.

                                                          …

Era uma tarde quente. Eu e meu irmão brincávamos no quintal de nossa casa. Havia no quintal cerca de seis árvores, algumas de frutas como limão, ameixa, laranja e bergamota. Tinha  também uma roseira torta no muro, presa por um arame para não despencar, um tanque no qual nos banhávamos quando era verão, uma galinha de estimação, andarilhando por aqui e por ali, e um galpão, ao fundo de todo esse lugar. Ainda me lembro do balanço, da terra preta e de um novo manduruva a cada galho da ameixeira. Atrás do galpão, mais ao fundo ainda, havia um prédio de 15 andares. Alto e cheio de janelinhas. Nossos olhos mal conseguiam contar. Minha lembrança é estranhamente silenciosa. Talvez porque eu e meu irmão, além de brincarmos de muitas coisas, tínhamos uma sintonia especial: Nossos pensamentos se conversavam sem que precisássemos falar muito e, como um rio que corre, a gente só brincava…

Naquele dia, em especial, eu andarilhava igual a estimada galinha da família; para lá e para cá. Carioca, nossa galinha, naquela tarde estava quieta.  Mimosa, minha cachorra que tinha uma mancha preta no pelo, me olhava serelepe abanando o rabo. E tudo aconteceu quando eu estava olhando para o chão, observando a grama e os gravetos de sempre. Naquele momento, o instante deu espaço para o inusitado. Achei ali, no meio da grama, um carrinho em miniatura!

Logo que peguei ele na mão, vasculhei a realidade de sua aparição. Mas era isso mesmo: Um pequeno carrinho estranho, novo, colorido, achado no quintal por mim.

-Mano, olha esse carrinho que eu achei!

-Deixa eu ver… Que legal!

Enquanto meu irmão observava surpreso, eu olhei para o mesmo lugar onde eu o encontrara e qual não foi minha surpresa, quando dei de cara com outro carrinho! Olhei para cima, e para os lados e lá estava, de repente, sem muito aviso, outros brinquedos pequenos em miniatura, espalhados pelo chão.

-Mano, olhe tem mais aqui! E ali outro…E outro!!!!!

Enquanto a gente se surpreendia com os achados, ouvimos mais um novo objeto caindo do céu.  Olhamos para cima e lá estavam as nuvens. Como crer naquilo que nos parecia? Eu e meu mano olhamos um para o outro e quase nem respiramos de tanta euforia. Sem combinar, gritamos juntos:

-Chuva de brinquedo!!!!!

E daí em diante foi uma festa só! Pulamos felizes e começamos a juntar todos pequenos brinquedos que caiam no chão. E eles caiam sem parar!!!!

Meu irmão olhou com mais atenção e reparou  um garotinho da janela do décimo terceiro andar do prédio que ficava ao fundo do nosso quintal. Era ele quem arremessava, lá do alto, nossos achados.

Sem diminuir em nada nossa euforia, meu irmão disse:

-Mana, olha lá!

A sensação surreal de uma chuva de brinquedos era excitante e a euforia não mudou em nada quando descobrimos a verdadeira fonte da chuva: O garoto nuvem. Mais uma vez sem combinarmos nada, olhamos um para o outro e, em tom de cumplicidade, gritamos enchendo os pulmões de ar, o mais forte que conseguíamos:

-Joga mais!!! Joga mais!!!

E o garoto jogava enquanto eu e meu mano pulávamos como que celebrando aquela chuva de brinquedos que caía sobre nós.

Após esse dia, toda tarde la estávamos nós dois, esperando nossa chuva sagrada!  A gente puxava o ar bem fundo nos pulmões, olhava para a décima terceira janelinha e começávamos a gritar:

-Amigo!!! Amigo! Amigo…

Ao ouvir nossas vozes, ele quase sempre saía na janela e acenava.

A gente continuava gritando…

-Joga mais! Joga mais…

E o garoto começava a jogar! E lançava os seus brinquedos. Ao cabo de alguns dias, enchemos uma sacola bem grande. Como éramos pequenos, desconfio do tamanho da sacola, pois sabe como é a coisa na lembrança de criança…É, talvez não fosse tão grande. Mas vale o que estou lembrando. Ele lançava tanto os seus brinquedos que ao cabo de alguns dias enchemos uma sacola grande, enorme, infinita.

No final daquela semana, levamos para nosso quarto nossa sacola infinita, orgulhosos do nosso tesouro. Como piratas adentrando o barco com o baú de ouro, ficamos eu e ele em torno da sacola, com nossos olhos arregalados, felizes com os achados na nossa chuva de brinquedos.

Porém, contos de fada não acabam de forma tão fácil. Na nossa história alguém pronto a roubar nosso tesouro apareceu.

Nossa mãe era uma mulher prática. Sem muito tempo para rodeios e para as nossas euforias. Certo dia, passando pelo nosso quarto, percebeu a estranha sacola que tanto nos orgulhava.

-O que é isso aí crianças?

-São os brinquedos que pegamos na chuva mãe….

-Que chuva? Faz uma semana que não chove…

Rimos de nossa mãe por dentro. Nossos olhos se cruzaram e em silêncio nosso pacto mágico de piratas caçadores de tesouros imperou.

– Me digam de onde veio isso.

Naquele momento percebemos que o inimigo não daria trégua. Então, contamos, casuais e desprendidos sobre nosso amigo da janela e sobre a chuva. O relato era repleto da nossa alegria, contávamos cheios de leveza e orgulho.

-Como assim? Que amigo é esse?

– Nosso amigo mãe. Ele mora lá no fundo do quintal.

Aí mesmo que deu um nó na cabeça dela. Uma ruga de espanto e desconfiança surgiu na sua testa. Sua face ficou séria e isso não era presságio de bons ventos. Talvez uma tempestade se aproximasse.

-Me mostrem isso, quero ver de perto do que estão falando.

Levamos nossa mãe ao quintal e apontamos para a janelinha. Depois chamamos nosso amigo que apareceu prontamente e ela entendeu finalmente do que se tratava.

Aliviados, quase felizes de novo, entramos para dentro de casa, cúmplices de mais uma missão. Foi quando ela disse as palavras mais tenebrosas que ela podia ter dito naquele momento:

– Precisamos devolver esses brinquedos pois são do garoto e por sinal, a mãe dele nem deve estar sabendo disso.

E a chuva virou uma temida tempestade. Nosso tesouro querido, nossos dias de chuva de brinquedo arruinados por uma dessas regras estranhas de adultos. Se nosso amigo nos dera aquilo, tudo que nos dera era dele, óbvio, e não de sua mãe. Pra que entregar a ela?

 Eu hoje em dia sempre considero meus filhos donos reais de seus brinquedos. Isso me gera alguns problemas pois os adultos costumam dar presentes condicionados à cuidados especiais ou a usos pré definidos.

” – Olha que linda boneca que você ganhou para brincar… só não vá brincar com ela no barro que vai estragar.”

Regras de adultos as vezes ainda soam estranhas para mim.

Independente da nossa lógica ou da realidade dos fatos, o temível anúncio se cumpriu. Ela anunciou e assim o fez: Levou nossos achados, advindos daquelas chuvaradas no quintal.

Passada meia hora, a sensação era da madrugada avançando em nossas alminhas, agora derrotadas. Entramos nessa atmosfera, insones, esperando a volta daquela que instaurou o fim das chuvas.

Ouvimos o barulho da porta. Era nossa mãe chegando e ela trazia com ela um saco menor. De toda forma, sabíamos que nada nos consolaria.

-Vejam crianças, a mãe deles realmente não sabia de nada. Mas ela quis separar alguns brinquedos para vocês; os que são mais velhinhos … Esses vocês podem ficar de presente.

Ela não entendeu nada! Ela não entendia de aventuras e nem de prêmios de consolação, pois para nós aquele saquinho murcho simbolizava o naufrágio.  Éramos de novo duas crianças normais brincando num quintal, agora árido e seco.

Nem toda história real é um conto de fada. Nossas tardes de chuva de brinquedos secaram.

Na caminhada pela trilha eu podia refazer cada pedaço da lembrança. Meu irmão não estava ali comigo, mas lembrar o trazia para perto de mim. Tudo bem, a aventura permanecia.  A trilha continuava difícil e a neblina baixara. Dei cara com o acampamento onde todos nos esperavam. Começou uma chuva e parei de pensar na minha infância, pois a chuva caindo sempre leva embora os pensamentos que rondam minha cabeça. Prossegui redesenhando o começo, montando a barraca, armando a lona para garantir proteção contra a chuva, mas de alguma forma a chuva ainda me lava. Ainda me leva brinquedos e ainda me trás meu mano de volta.

caminhando na chuva

 

 

364 palavras de adeus

ilustração de "The Premature Burial (1844) by Edgar Allen Poe

 

 

Voltar à lida das minhas miragens é como ficar imóvel diante da dureza da minha alma. Tudo está quieto. Não movo o sorriso, não há vento, não me movimento, não há nenhum pedido de socorro.

A morte é uma silenciosa manhã que nunca chega.

Me machuquei com essa nossa história de não amor. Fiquei com um estilhaço dentro da pele e isso sangra. Queria esfregar o sangue desses tantos cortes no teu rosto que morre na minha lembrança. Queria ver no seu corpo o cheiro forte do sangue que escorre das minhas palavras. Queria fazer rugas brotarem nos seus ossos, e de toda sua ossatura, fazer uma velharia flácida- magra, extinta e póstuma. Tudo isso para ver se a vida voltava. Queria apagar o passado e acordar no dia em que fui embora pela primeira vez. Queria ficar na horizontalidade da escolha banal de te desprezar.  Fico agora rondando a inércia de não- te-amar. Confesso que ficou esse seu não amor me fazendo mal. Ficou todo o rascunho, apagado de borracha no rasgo do papel. No verso da folha, eu de vez em quando leio. Leio e releio as vezes que inventei de olhar o escuro acreditando na conversão da sombra em luz, as vezes que fiquei procurando alguém que não havia. Dei de cara com um rato molhado num canto sepulcro. Sozinha, vi que não havia sequer um rastro teu.  Eu não sabia que tuas sapatilhas pontiagudas pesariam tanto na minha alma branda, que espancariam minha feminilidade. Envelheci de tanto não falar sua língua. Fiquei feia de tanto ouvir teus não dizeres de amor. Fiquei fria de tanto não ganhar da tua carne as profundezas sagradas do toque. Foi uma lista de infâmias essa nossa história que não dissolvia. Foi um assalto à minha existência, d’onde adormeci criança e acordei morrendo. Foi um tempo de esforço quase sem passo. Não queria me sentir esse pedaço de terraço frio, sem mote. Queria estar inteira sem esse troço. Queria não estar como a garganta tonta, com a voz rouca, com esse eco estático que restou. Queria me sentir livre, como eu realmente sou. Sair inteira dessa nossa história que nunca começou.

RE(A)MAR

Ficcionar a vida pode ser um ato libertário…

pés 2

Tanto quanto criar é um movimento arbitrário de realidade interna.

Agora negar o auto-biográfico, seria sim uma falácia literária.”

PRÓLOGO DO AMOR

              Eu que morava na montanha, certo dia me aventurei em alto mar… Foi num barquinho, na base da contemplação do sol, que ancorei minhas preces pelo tempo que pude remar. Moro na montanha, entre seu cume e seu pé. Moro bem ali, na lida entre ida e vinda. Moro na pedra que rala, que escorrega e que firma. Ali onde a gravidade transita. Moro na andança da contemplação durante a caminhada. Moro dentro da minha montanha azulada, bem em frente ao que resta do mar.   

 

DA REMAÇÃO, DA REMARIA

         Já foi ontem que tudo era. No princípio era um balãozinho vermelho, hoje são panos rasgados e alguma lantejoula que ainda brilha. Ontem era a andança e o peso de correntes marítimas, agora desliza. Foi que um dia larguei o leme, os remos… Fiquei ali: Olhando as ondas à deriva, olhando o sol se pondo. Observei o sol e sua quentura acabando até o entardecer completo. Quando virou noite, antes de olhar pra lua cheia, voltei à superfície das minhas próprias marés. Andar com aquele barco de madeira molhada era enfrentar o oceano. Na verdade eu olhava pela fresta da madeira o horizonte lá adiante. Fixava tanto os olhos nele que só via o sol luzindo na água. Mais nada. O entorno à fresta que eu escolhi pra espiar, eu deixei de lado.  O espaço que emoldurava a visão do sol eram dois pedaços de uma madeira velha em ruínas. Lá fora só a profundidade do mar. Eu sabia que não me afogaria, mas queria ainda sim deixar o barco sem precisar  arriscar a vida em alto mar. Teve uma vez que quase pulei na água. Depois voltei atrás. Por algum tempo também falei uma língua que ninguém ouvia. O mar só prestava atenção nos meus fonemas. Confuso e sóbrio, ele sorria. O mar foi um ‘senhor cidadão’ naquele tempo de “remaria”. Rezava eu, preces e mais preces. Jejuava na base da Ave Maria’. Ancorava a alma na ideia de um milagre como se não soubesse que estar ali no barco já o era. Ocorre que nem todo passeio em alto mar é uma viagem possível. Na verdade nunca é, a não ser naquelas histórias de aventuras piratas onde tripulações inteiras se unem pra colocar o navio no eixo, mesmo assim não se eximindo de sucumbir à tempestades.

DO DESENROLAR DA METÁFORA

            Você leitor deve estar se perguntando que tipo de metáfora é essa e pra que essa ladainha marina… Eu só queria dizer que chegar ao fim de um relacionamento sempre é denso, escuro, uma saída noturna de um lugar em alto mar. Mas que essa saída ainda sim está submersa a um céu estrelado, plausível de lua cheia, luz e calmaria. Queria dizer que deixar alguém pra trás é como largar os remos de um barco e se colocar à deriva novamente. Queria dizer que não é nem triste ou feliz, é um movimento desatinado de voltar à praia e ancorar a alma na montanha. Queria só dizer o como é bom voltar para casa das minhas caminhadas.

Foto dos pés da Bárbara Trelha. Meus pés na praia do Campeche e pedra na praia da Joaquina em Florianópolis- SC
Foto dos pés da Bárbara Trelha.
Meus pés na praia do Campeche e pedra na praia da Joaquina em Florianópolis

PALAVRA

 

      Quando eu tinha oito anos, em uma  tarde normal,                              eu recebi um livro especial….

livro

A cidade era Pelotas, no Rio Grande do Sul. Era ela quem abrigava minha infância. Eu era uma criança curiosa. Era quieta por fora e inquieta por dentro. Era uma menina observadora. Estudava na Escola Estadual Dom Joaquim Ferreira de Mello. Lembro-me que rezávamos todos os dias antes da aula: “Ave Maria cheia de graça…” Era um rito; todos nós em pé, enfileirados ao lado da classe. Muitas coisas acontecem na escola. Lembro claramente da primeira vez que a professora me chamou atenção na sala de aula por eu estar conversando demais. Eu tinha seis anos e senti muita vergonha. Mas era raro eu levar bronca. Sempre fui de fazer o que me pediam direitinho. Até hoje sou assim. Em geral eu cumpria minha função e em paralelo tinha meu mundo de pensamentos que eu pouco  repartia. Ainda hoje, pouco o compartilho com o mundo.

Naquela tarde normal minha turma na escola foi chamada para descer até o salão. Eu estudava no andar de cima e ainda lembro o prazer que eu tinha em descer as escadas. Descia muito rápido e apostava comigo mesma cada vez quem descia mais rápido: ‘pé direito ou pé esquerdo?’ Me sentia muito hábil nos degraus, forte… rápida! No salão, o pessoal de uma editora, distribuía livros acompanhados de rifas. Podíamos levar os livros que escolhêssemos, em quantidade de três por bloco de rifa. Junto de cada trio de livros, a rifa ia junto com intuito de que as crianças vendessem os números. Assim os livros poderiam ficar conosco e, caso não vendêssemos, pagaríamos por eles. Eu escolhi três!  Um deles me chamou mais atenção: Era um livro com balões de fala em branco. As imagens possuíam uma certa narrativa mas o leitor é que criaria a escrita, a história. Vendi as rifas e passei, daquele dia em diante, a levar o livro de balões em branco para a cama. Depois que todos adormeciam, eu pegava um lápis e meu livro- que estavam embaixo das cobertas- e os abria. A insônia – esqueci de dizer- foi minha companheira até eu ficar adulta. Era nessas horas, entre o sono que nunca vinha e a vigília, que eu usava a luz azulada que escapava do quarto dos meus pais, trazida da televisão  por uma vidraça- que eu mergulhava na minha criação. Aquele livro marcou minha infância e de certa forma abriu uma porta. Virou um enorme balão a ser preenchido pela minha fala.  A partir daí, contar coisas e escrevinhar-me passou a ser rotineiro, íntimo, rito de sonho e remédio pra qualquer insônia ou angustia. A partir daí a escrita não conteve mais minha mão e eu passei a existir de forma mais ampla. As coisas das palavras foram tomando proporções cada vez maiores.

   A linguagem  emancipou minha alminha de oito anos e eu, de palavra em palavra,

                                                                                                    me refiz verbo.