Por: Bárbara Trelha

Era uma vez uma manhã fria…

aquarela

A trilha estava difícil e a neblina fechava a visão. Eu não queria   que aquele trajeto acabasse mas ao mesmo tempo rezava que logo déssemos de cara com acampamento onde todos nos esperavam. Não sei quando comecei a pensar na minha infância, pois muitas coisas rondam a minha cabeça. Eu, toda vez que ando, visito algumas lembranças, redesenho seus desfechos e sempre fiz isso, desde criança.

                                                          …

Era uma tarde quente. Eu e meu irmão brincávamos no quintal de nossa casa. Havia no quintal cerca de seis árvores, algumas de frutas como limão, ameixa, laranja e bergamota. Tinha  também uma roseira torta no muro, presa por um arame para não despencar, um tanque no qual nos banhávamos quando era verão, uma galinha de estimação, andarilhando por aqui e por ali, e um galpão, ao fundo de todo esse lugar. Ainda me lembro do balanço, da terra preta e de um novo manduruva a cada galho da ameixeira. Atrás do galpão, mais ao fundo ainda, havia um prédio de 15 andares. Alto e cheio de janelinhas. Nossos olhos mal conseguiam contar. Minha lembrança é estranhamente silenciosa. Talvez porque eu e meu irmão, além de brincarmos de muitas coisas, tínhamos uma sintonia especial: Nossos pensamentos se conversavam sem que precisássemos falar muito e, como um rio que corre, a gente só brincava…

Naquele dia, em especial, eu andarilhava igual a estimada galinha da família; para lá e para cá. Carioca, nossa galinha, naquela tarde estava quieta.  Mimosa, minha cachorra que tinha uma mancha preta no pelo, me olhava serelepe abanando o rabo. E tudo aconteceu quando eu estava olhando para o chão, observando a grama e os gravetos de sempre. Naquele momento, o instante deu espaço para o inusitado. Achei ali, no meio da grama, um carrinho em miniatura!

Logo que peguei ele na mão, vasculhei a realidade de sua aparição. Mas era isso mesmo: Um pequeno carrinho estranho, novo, colorido, achado no quintal por mim.

-Mano, olha esse carrinho que eu achei!

-Deixa eu ver… Que legal!

Enquanto meu irmão observava surpreso, eu olhei para o mesmo lugar onde eu o encontrara e qual não foi minha surpresa, quando dei de cara com outro carrinho! Olhei para cima, e para os lados e lá estava, de repente, sem muito aviso, outros brinquedos pequenos em miniatura, espalhados pelo chão.

-Mano, olhe tem mais aqui! E ali outro…E outro!!!!!

Enquanto a gente se surpreendia com os achados, ouvimos mais um novo objeto caindo do céu.  Olhamos para cima e lá estavam as nuvens. Como crer naquilo que nos parecia? Eu e meu mano olhamos um para o outro e quase nem respiramos de tanta euforia. Sem combinar, gritamos juntos:

-Chuva de brinquedo!!!!!

E daí em diante foi uma festa só! Pulamos felizes e começamos a juntar todos pequenos brinquedos que caiam no chão. E eles caiam sem parar!!!!

Meu irmão olhou com mais atenção e reparou  um garotinho da janela do décimo terceiro andar do prédio que ficava ao fundo do nosso quintal. Era ele quem arremessava, lá do alto, nossos achados.

Sem diminuir em nada nossa euforia, meu irmão disse:

-Mana, olha lá!

A sensação surreal de uma chuva de brinquedos era excitante e a euforia não mudou em nada quando descobrimos a verdadeira fonte da chuva: O garoto nuvem. Mais uma vez sem combinarmos nada, olhamos um para o outro e, em tom de cumplicidade, gritamos enchendo os pulmões de ar, o mais forte que conseguíamos:

-Joga mais!!! Joga mais!!!

E o garoto jogava enquanto eu e meu mano pulávamos como que celebrando aquela chuva de brinquedos que caía sobre nós.

Após esse dia, toda tarde la estávamos nós dois, esperando nossa chuva sagrada!  A gente puxava o ar bem fundo nos pulmões, olhava para a décima terceira janelinha e começávamos a gritar:

-Amigo!!! Amigo! Amigo…

Ao ouvir nossas vozes, ele quase sempre saía na janela e acenava.

A gente continuava gritando…

-Joga mais! Joga mais…

E o garoto começava a jogar! E lançava os seus brinquedos. Ao cabo de alguns dias, enchemos uma sacola bem grande. Como éramos pequenos, desconfio do tamanho da sacola, pois sabe como é a coisa na lembrança de criança…É, talvez não fosse tão grande. Mas vale o que estou lembrando. Ele lançava tanto os seus brinquedos que ao cabo de alguns dias enchemos uma sacola grande, enorme, infinita.

No final daquela semana, levamos para nosso quarto nossa sacola infinita, orgulhosos do nosso tesouro. Como piratas adentrando o barco com o baú de ouro, ficamos eu e ele em torno da sacola, com nossos olhos arregalados, felizes com os achados na nossa chuva de brinquedos.

Porém, contos de fada não acabam de forma tão fácil. Na nossa história alguém pronto a roubar nosso tesouro apareceu.

Nossa mãe era uma mulher prática. Sem muito tempo para rodeios e para as nossas euforias. Certo dia, passando pelo nosso quarto, percebeu a estranha sacola que tanto nos orgulhava.

-O que é isso aí crianças?

-São os brinquedos que pegamos na chuva mãe….

-Que chuva? Faz uma semana que não chove…

Rimos de nossa mãe por dentro. Nossos olhos se cruzaram e em silêncio nosso pacto mágico de piratas caçadores de tesouros imperou.

– Me digam de onde veio isso.

Naquele momento percebemos que o inimigo não daria trégua. Então, contamos, casuais e desprendidos sobre nosso amigo da janela e sobre a chuva. O relato era repleto da nossa alegria, contávamos cheios de leveza e orgulho.

-Como assim? Que amigo é esse?

– Nosso amigo mãe. Ele mora lá no fundo do quintal.

Aí mesmo que deu um nó na cabeça dela. Uma ruga de espanto e desconfiança surgiu na sua testa. Sua face ficou séria e isso não era presságio de bons ventos. Talvez uma tempestade se aproximasse.

-Me mostrem isso, quero ver de perto do que estão falando.

Levamos nossa mãe ao quintal e apontamos para a janelinha. Depois chamamos nosso amigo que apareceu prontamente e ela entendeu finalmente do que se tratava.

Aliviados, quase felizes de novo, entramos para dentro de casa, cúmplices de mais uma missão. Foi quando ela disse as palavras mais tenebrosas que ela podia ter dito naquele momento:

– Precisamos devolver esses brinquedos pois são do garoto e por sinal, a mãe dele nem deve estar sabendo disso.

E a chuva virou uma temida tempestade. Nosso tesouro querido, nossos dias de chuva de brinquedo arruinados por uma dessas regras estranhas de adultos. Se nosso amigo nos dera aquilo, tudo que nos dera era dele, óbvio, e não de sua mãe. Pra que entregar a ela?

 Eu hoje em dia sempre considero meus filhos donos reais de seus brinquedos. Isso me gera alguns problemas pois os adultos costumam dar presentes condicionados à cuidados especiais ou a usos pré definidos.

” – Olha que linda boneca que você ganhou para brincar… só não vá brincar com ela no barro que vai estragar.”

Regras de adultos as vezes ainda soam estranhas para mim.

Independente da nossa lógica ou da realidade dos fatos, o temível anúncio se cumpriu. Ela anunciou e assim o fez: Levou nossos achados, advindos daquelas chuvaradas no quintal.

Passada meia hora, a sensação era da madrugada avançando em nossas alminhas, agora derrotadas. Entramos nessa atmosfera, insones, esperando a volta daquela que instaurou o fim das chuvas.

Ouvimos o barulho da porta. Era nossa mãe chegando e ela trazia com ela um saco menor. De toda forma, sabíamos que nada nos consolaria.

-Vejam crianças, a mãe deles realmente não sabia de nada. Mas ela quis separar alguns brinquedos para vocês; os que são mais velhinhos … Esses vocês podem ficar de presente.

Ela não entendeu nada! Ela não entendia de aventuras e nem de prêmios de consolação, pois para nós aquele saquinho murcho simbolizava o naufrágio.  Éramos de novo duas crianças normais brincando num quintal, agora árido e seco.

Nem toda história real é um conto de fada. Nossas tardes de chuva de brinquedos secaram.

Na caminhada pela trilha eu podia refazer cada pedaço da lembrança. Meu irmão não estava ali comigo, mas lembrar o trazia para perto de mim. Tudo bem, a aventura permanecia.  A trilha continuava difícil e a neblina baixara. Dei cara com o acampamento onde todos nos esperavam. Começou uma chuva e parei de pensar na minha infância, pois a chuva caindo sempre leva embora os pensamentos que rondam minha cabeça. Prossegui redesenhando o começo, montando a barraca, armando a lona para garantir proteção contra a chuva, mas de alguma forma a chuva ainda me lava. Ainda me leva brinquedos e ainda me trás meu mano de volta.

caminhando na chuva

 

 

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