( Uma proposta de acessibilidade à deficientes visuais e pessoas sem letramento)
Ficha técnica:
Música ‘Miau’: Bárbara Trelha, Arranjo e execução de violino– Davys E. Espíndola. Contrabaixo- ClóvisMartins Guitarra/Violão- Piero D. Nossol , Gravação: Estúdios Decibel, Revisão de áudio: Produsom, Vozes dos Personagens: Narradora– Ana Carolina M. Coan, Clara– Maria Eduarda Bras, Mãe de Clara– Bárbara Trelha, João– João Victor Gomes de Queiroz, Gato: Fabrício Sfredo, Diretora– Geovania Ramos, Túlio– kuro, Professora- Isadora Trelha Matias. Coro de Crianças:Alunos da EBM José Amaro Cordeiro (2017).
Livro desenvolvido com fomento da CAPES durante o curso de pós graduação Profissional em Artes da UDESC-SC/2016-2018.
Considerações:
O material abaixo foi desenvolvido após dois anos e meio de pesquisa e processo de criação. Orientado pela Prof(a). Dr(a) Teresa Mateiro – Prof-Artes /UDESC- o livro dialoga com um artigo científico e com um planejamento pedagógico curricular de música sobre literatura, educação musical e leitura compartilhada. A pesquisa e concretização desse material só se deu devido ao fomento da CAPES e apoio da equipe técnica descrita no livro. Os alunos curriculares de música fizeram parte da criação do material como consultores diretos e como cantores – dublagem no áudio book.
A primeira crise durou uma hora e cinquenta minutos. A segunda, uma hora e quarenta. Depois teve a terceira, sempre com seu Luiz marcando no relógio. Por fim, uma crise de apenas vinte minutos…
Quando seu Luiz olhou no relógio para medir a última crise de seu filho João, haviam-se passado apenas cinco minutos.
“- Cinco minutos? Bem… cinco minutos, até eu tenho!” (e uma risada boa)
Na noite passada conheci seu Luiz. Eu contei a ele que trabalhava com deficientes e ele disse que tinha um filho autista de nove anos de idade. Perguntou se eu conhecia Temple Grandin. Eu fiquei surpresa. Poucas pessoas conhecem Temple Grandin e sua relevância emblemática. Seu Luiz iniciou a conversa denotando as habilidades de seu filho, medalhista de taekwondo. A conversa foi longa e perguntei sobre como ficaram sabendo que o garoto era autista. Ele me contou muitas coisas e entre elas, narrou as tais crises. As crises das quais ele falava, eram “crises de irritabilidade” vividas pelo seu filho João quando ainda tinha 3 anos de idade.
A história do seu Luiz é a de muitos pais de autistas. Conheço alguns pais nessa condição. Conheci o Gilberto, pai do Vitor, o Luiz, pai do Dudu, o Edson, pai do Felipe… O que eles tem em comum? Histórias para nos contar… São cenas que vão do desespero e completa vulnerabilidade a uma pueril felicidade e gratidão. Mas entre tantas histórias, a de seu Luiz foi singular. Talvez a sua maneira simples, elegendo o essencial a ser dito e trazendo uma amorosidade paternal na fala, tenha feito eu parar e escrever esse texto.
As crises de irritabilidade são chamadas popularmente de diversas formas. Surto, desorganização mental ou mesmo crise. Seu luiz, ao me contar, não se detinha ao nome ou conceito da crise, mas ao que ele entendia ser o motivo da crise. –” Era o João tentando dizer o que não conseguia”. João na época das crises não falava. Para quem não sabe, muitos autistas após um ano ou dois param de falar. Alguns permanecem muitos anos até voltarem a falar. Quando João tinha um ano, respondia ao pai pequenas perguntas. “- Quem é o lobinho do pai? – Auuuuuuu”, respondia. Mas assim como acontece com muitas crianças autistas, um dia a fala some. Os pediatras encaminham para os neuropediatras, mas a fala demora a voltar. Alguns pais, angustiados pela privação da principal forma de uma pessoa interagir socialmente, ficam ansiosos. Decifrar o que o filho quer, dar limites e sustentar o limite mesmo ante birras, que na ausência de linguagem ficam complicadas, representam um desafio e um aprendizado constantes. Quando João teve a primeira crise, intuitivamente seu Luiz se manteve ao seu lado. Na primeira crise João queria algo que não era possível no momento e a quebra da expectativa no garoto gerou uma irritação que segundo o pai, se deu pelo ruído da cidade e movimentação da rua. Comentou que certa vez, João chegou a subir e descer a escada rolante de um shopping da cidade por 53 vezes seguidas. Chegar em casa naquele dia foi uma missão muito dura. Entrou na sala após berros e solavancos do seu moleque. Estavam exaustos. Olhou firme para o filho: “- Filho, o pai está aqui com você.” Depois disso, contou que as crises foram diminuindo e que foi pegando o jeito de ficar com João nessas situações, quando o garoto derrubava tudo ao seu redor, quebrava, chorava, gritava. Contou que permanecia ao seu lado, a cada episódio, percebendo a diminuição progressiva. Aos poucos venciam as crises sem a tal da “Respiridona”. Que ambos de forma dura, porém tenaz, conseguiram contornar reações sem a necessidade do uso da medicação.
DONA RESPIRIDONA
Seu Luiz e sua esposa chegaram no consultório de um médico neoropediatra em Blumenau. Tinham um primeiro laudo diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas queriam uma segunda opinião . Seu Luiz quando narra sua passagem pelo consutório do médico fala com muita propriedade dessa experiência que muitos vivem. Sem muito saber sobre o que os aguarda quando entram em um consultório, olham para o médico e sentem um misto de ansiedade e angustia. Na fala de um médico durante um diagnóstico muita coisa acontece. As palavras escolhidas podem tanto dar esperanças como representar um abismo profundo.
O seu Luiz não sabia o que ia escutar do neuropediatra. O médico não gostou que João mexesse em um objeto de madeira na mesa do consultório. Não era um bom presságio. Seu Luiz narra a mobília escura do consultório. Ele reparou que não havia nenhum brinquedo lá. Ele, em sua simplicidade me disse: ” – Imagina…eu não tenho estudo nem nada, minha área é bem outra, mas se eu trabalhasse com criança eu teria muitos carrinhos e brinquedos espalhados, ia ser um lugar legal, que a criança se sentisse bem.” O que seu Luiz fala nada mais é que a descrição de um lugar humanizado. Alguns hospitais infantis possuem a mobília colorida. O Hospital Pequeno Príncipe onde atuei por um tempo, possui brinquedotecas que suavisam a hospitalização das crianças e permanência das famílias. Mas o neuropediatra não parecia entender de atendimento humanizado. Em poucas palavras confirmou disgnóstico do João e como resposta às tais “crises” prescreveu Respiridona. Seu Luiz, movido por um sutil instinto de preservação da ” sua cria”, indaga sobre possíveis efeitos colaterais. O médico diz que no máximo crescerão os mamilos do menino, nada muito sério. Ele então levanta a possibilidade de não dar a medicação. O médico diz que muitos tomam; que até mesmo um médico renomado prescrevia ao filho que também era autista. O médico indaga como ele,”um pai leigo”, questionaria isso. Seu Luiz conta que ficou Indignado. ” Não gostei desse médico, então eu disse: Cada pai sabe o que faz com o seu filho e cada filho é diferente.” Foi para casa coma receita mas ao fim, permaneceu em sua escolha.
Não faço apologia ao não uso de medicação, mas acredito que é preciso estudar caso a caso. No caso do João, o médico desconsiderou o fato de existir ali, um pai embuído de tolerar as crises se colocando de forma amorosa e corajosa. Desconsiderou um pai que conseguiria dar continente ao turbilhão de coisas que acontecem dentro de uma pessoa que possui esse tipo de transtorno do neurodesenvolvimento. Autismo é uma condição sem receita fixa, sem mapa, mas cuja singularidade de manifestações tornam a natureza mais bela e ainda mais misteriosa.
Seu Luiz saiu do consultório e antes de decidir, foi estudar a tal Respiridona, diferente do médico que não estudou o paciente. Seu Luiz foi pesquisar e achou o que qualquer um acha. A realidade farmacêutica mais dura. As medicações que tratam psicóticos, dependentes químicos e síndromes diversas, muitas vezes são as mesmas. Isso até hoje me causa espanto. Pisamos na lua e ainda damos os mesmos remédios para um esquizofrênico e para uma criança autista. Quando eu comecei a trabalhar como musicoterapeuta com dependentes químicos era ingênua. Achava que a ciência avançava para servir ao ser humano e ao planeta terra. Descobri em pouco tempo sobre a precariedade de remédios quando perguntei a um colega de trabalho que era psiquiatra:
– Porque as medicações não são específicas? Porque a ciência não investiga e desenvolve remédios para dependência de cada tipo de droga, para cada quadro de síndrome de abstinência?
A resposta foi…
-Porque precisa muito investimento fianceiro para isso. Em contrapartida, quando não se desenvolve novos medicamentos, há um fortalecimento de algumas medicações e laboratórios que já possuem seus componentes firmados no mercado, o que torna a indústria farmacêutica lucrativa e custoso o desenvolvimento de outras.”
Eu passei a entender aos poucos que a ciência era alimentada também, pela lógica do mercado.
Seu Luiz percebeu que a droga ajudaria por um lado e não ajudaria por outro. Optou por não medicar seu menino.
A opção tem obtido bons resultados, embora muitas barreiras tenham sido enfrentadas.Com a dedicação de profissionais e pessoas, João cresceu. Vai a escola regular e segundo o pai é uma referência por lá também. Voltou a falar, escolheu fazer taekwondo e virou medalhista. Na cerimônia de troca de faixa, sua professora perguntou se alguém gostaria de falar algo. João prontamente levantou e foi ao microfone. Disse a todos, no auge dos seus 9 anos:
“- Precisamos treinar e treinar e treinar. Precisa ter foco, fé e objetivo. “
Seu Luiz me contou que o que deu força e norte a ele foi uma frase de um amigo pai de uma garota especial. O amigo disse para ele esquecer as barreiras e acreditar no potencial do João. Ele fez isso. Acredita no seu filho e no quanto ele pode vencer cada etapa. Busca pessoas para ficarem por perto dando força para o João e anda por aí com uma porção de fotos do seu menino lutando, num orgulho só. Comecei a conversar com o pai de João, ao acaso numa lanchonete enquanto jantava após um dia longo. Ele aguardava dar a hora de buscar João no treino. Eu aguardava encontrar um amigo que passou o restante da noite conversando comigo sobre a vida. O amigo, lembrou uma frase de um grande pesquisador do homem. Eu não contei para o meu amigo da história que eu havia conhecido pois ele estava muito atento às suas contações. Mas quando bruno falou a frase do Jung, eu pensei… Essa frase tem tudo haver com a conversa e com a história do seu Luiz..
Ao fim da noite, as horas passaram rápidas, tanto no meu jantar enquanto ouvia seu Luiz quanto no bar enquanto ouvia Bruno falar de suas “Filosofias Teslianas”. Foi uma oportunidade única o encontro com seu Luiz.
Nos despedimos. Fiquei com uma das frases mais singelas e bonitas que ouvi um pai dizer. O pai do João disse:
” Quando saiu o diagnóstico a gente não sabia o que fazer com esse menino…agora eu não saberia o que fazer sem ele”.
“Penso que talvez a alma humana não possua limites para amar…”
Introdução
Ouço muita ladainha em torno do assunto ‘amor’. Uma das falas mais comuns é sobre a existência de um amor maior que nos santifica de alguma forma. Um amor altruísta e edificante, capaz de purificar qualquer alma pecaminosa. Menos comum, ouço sobre outras formas de pensar o amor. Um exemplo é o amor visto do ponto de vista da neurociência. Ela o percebe como uma série potente de ligações sinápticas ditadas por experiências específicas. Também pouco se fala do amor sob um aspecto mais biológico. Para a biologia o amor pode ser essencialmente guiado por hormônios que aproximam os corpos uns dos outros- por meio dos feromônios- com finalidade única de perpetuação da espécie. Dentre tantas possibilidades de leitura, há quem olhe também para os efeitos do amor na alma. Desconhecemos os mistérios da alma e seus códigos de funcionamento. Como os estudos da alma não cabem ainda nas mãos da lógica científica, ficamos à deriva, em observação. O ser humano logrou ao longo dos tempos a capacidade de imprimir a um conjunto de afetos um único nome: AMOR. Essa pequena palavra encerra em si uma variedade absurda de significados que se formam a partir de inúmeras sensações. São multi combinações fenomenologicamente inexplicáveis como o próprio tempo o é. O fato é que desconhecemos o fenômeno ‘amor’ na sua inteireza tanto quanto desconhecemos as milhões de galáxias espalhadas no cosmo. Mesmo quando falamos dos mistérios da criação, o amor é capaz de aparecer como um ingrediente deidificado, afinal Deus é também fonte de amor para os seres humanos. Na ânsia de dar organicidade ao amor e expressar as inúmeras formas de manifestação desse sentimento, usamos a linguagem. Por se tratar de ser mais complexo que a língua, o amor acabou levando homens a buscar formas mais apropriadas de expressão. Formas linguísticas que transcendessem a simples comunicação social. Isso acontece quando conseguimos estabelecer uma relação semântica com o mundo do inefável. É quando surge a ARTE, fruto de um bom casamento entre as experiências das linguagens com as coisas do indizível. Nela, a aproximação do homem às coisas que lhe fogem à exatidão conceitual, mas que ao mesmo tempo o invadem. A arte, na sua premissa libertária de natureza ontológica, nos aproxima das coias que não conseguimos nominar. A arte naturalmente confere ao amor possibilidades de forma, cor, som, harmonia e sentido. Dá contornos às coisas humanas mais complexas e misteriosas. A arte possui uma semântica própria para representar as coisas não decifráveis e de maneira intertextual, consegue desembaraçar as faces do amor. O poeta Percy Shelley em seu ensaio sobre o amor, o descreve como ” o laço e a confirmação que conecta não somente o homem ao homem, mas a tudo que mais existe.” A imensidão desse assunto me me toca por ser o amor o combustível vivo de toda minha existência. Decidi escrever sobre meus devaneios acerca do amor em foma de ensaio. Decidi isso depois que meu filho mais velho, um dia desses, me abordou perguntando por quê o assunto amor aparecia tantas vezes em minhas canções. Eu disse a ele que me sentia assim: em repetidos estados de amor. Após a resposta, me beijou a face de forma amorosa e, sorrindo, disse que já sabia. Resolvo escrever esse breve ensaio sobre o amor por me sentir muito amorosa e ao mesmo tempo tão distante do amor. Amar, na minha história, sempre foi um duelo interno. Permanecer no amor, uma constante luta entre trevas e luz, sombra e sol. Publicarei esse ensaio em partes. Os intervalos de tempo servirão para que o leitor possa fruir junto com o ensaísta, seus próprios devaneios acerca do amor.
Do amor cultural às canções
O amor cultural ao qual me refiro, se entrelaça com o conceito de “par”. O duo, o casal, a junção de dois seres. Se pensarmos que dois seres nunca serão um, que uma unidade composta de duas pessoas diferentes sempre estará prenhe de contrastes, o conceito de par possui dentro de si inúmeros rabiscos de dualidade. Nossa civilização ocidental não costuma lidar de forma eficiente com essa coisa da dualidade. Diferente das filosofias orientais que compreendem a relação intrínseca entre luz e sombra, fundo e figura, tudo e nada, nós -os ocidentais infelizes- gostamos de finais de filme onde tudo acaba em felicidade. Pensando em um casal como uma ideia de unidade institucionalizada ao longo dos tempos, penso que, na nossa cultura, ela possa ter se preenchido de outros aspectos das relações: A ideia de controle e a prática da opressão. A forma como a maioria dos casais instituídos vivem, muitas vezes divergem completamente de uma relação supostamente amorosa. Quando recebemos a ideia de casal e em seguida, a ideia de namoro, de noivado e de casamento, mesmo que em formatos e com nomes diferentes, todas vêm acompanhadas na prática da essência dual. Essa dualidade permanente é a essência de uma relação a dois. Contrário ao que a cultura propões massivamente (felizes para sempre), os pares formados a partir dessa proposta e pautados nela, comumente se encontram em estado de guerra, experienciando ambiguidades infinitas, caóticas experiências quebradas, fragmentando-se a cada bom dia repetido e tedioso. Ilustraria essa ideia coma canção Cotidiano de Chico Buarque mesmo podendo parecer clichê. ” Toda dia ela faz tudo sempre igual/ Me sacode às seis horas da manhã/ Me sorri um sorriso sempre igual / E me beija com a boca de hortelã.” De forma sutil, à primeira audição da letra, o ouvinte pode ser levado à sensação gostosa de uma vida a dois, com cenas de cuidado e até o sexo ligado ao amor, quando ao final da noite quando ele fala: “Toda noite ela diz pr’eu não me afastar/ Meia-noite ela jura eterno amor/ E me aperta pr’eu quase sufocar/ E me morde com a boca de pavor”. Conforme a música se repete, o tem cotidiano e suave começa a ficar enfadonho e quase angustiante. O próprio arranjo da canção propõe zonas de tensão harmônica que reforçam tensão. A canção é um gênero que une palavra a uma atmosfera afetiva. A música possui um certo “poder” quando consegue deslocar a força da palavra à outros lugares semânticos expressivos. A gente pode ter uma letra ( poesia) amável e doce num ‘texto melódico’ pesado e arranjo musical mais explosivo. Na canção e a palavra pode ter seu efeito alterado ou moldado. Eu costumo dizer aos meus alunos de interpretação vocal, que há de se observar a natureza desses dois textos. Quando o compositor respeita a natureza de ambos e não submete um ao outro, a canção ganha potência. O contrário, quando um dos elementos anula ou enfraquece o outro, a música não alcança essa unidade e é como um casal, ela fica dual em algum ponto. A arte busca a harmonia e um casal nunca a alcança completamente. Aí talvez a função da arte, entre tantas. Quando atinge a complementariedade simultânea e “perfeita” de elementos, ela causa êxtase, atravessa a alma. Voltando à institucionalização do amor em formatos sociais, falemos do casamento. Não menos assertivo, Chico tem também a canção ” Casamento dos Pequenos Burgueses” do musical ‘Ópera do malandro’ de 1978, onde usa humor e uma pitada de realismo para falar de um casal que passa a vida juntos por motivo adverso mas nada ligado ao amor verdadeiro. Aliás esse musical aborda muitas nuances das relações tanto amorosas quanto de poder, passando por questões e tabus quase intocáveis na nossa sociedade politicamente correta.
Assumindo essa contrariedade entre o que é ‘vendido’ e o que é vivido, podemos separar a expectativa pautada no que dita a cultura. Com isso podemos separar o que seja um amor institucionalizado dentro de um conceito falido com propostas políticas, e o que seja a realidade amorosa de um casal ( seja homem com homem, mulher e homem, pai e filho, casal de irmãos ou outros). Vou escrever, no próximo item, sobre o amor no sentido mais amplo, o amor que reside na superação e transcende os aspectos enganosos da ideia de casal. Mas antes devemos ainda passear pelos corpos…
Da biologia intrínseca
Homens e mulheres, afora a junção perfeita dos respectivos gametas, não foram feitos um para o outro. Mulheres em geral são mais felizes perto de outras fêmeas e homens perto de seus machos camaradas e de seu bando super estimado e auto-protetor. Fêmas por sua vez, embora não compartilhem da “broderagem” dos machos e códigos de honra quase inabaláveis, compartilham da necessidade quase instintiva de privadas limpas, de conversas extensas acerca de tudo e com todos, onde os requintes de detalhes sustentam a complexidade da qual nascem, da qual pertencem e da qual muitas vezes padecem. A linguagem para as fêmeas é a mais alta ferramenta de elo. Para os homens o silêncio reina e sustenta códigos de honra e lealdade: estruturas mais fundantes. Quando quebrados os códigos masculinos , machos resolvem “na mão” seus por menores. Eles ainda assistem MMA (Mixed Martial Arts) , vão à partidas de futebol, ou ainda, investem tempo e dinheiro em aplicação em bolsas de valores ou mesmo em processos judiciais que são polidores naturais dos instintos primitivos de lutar até vencer o inimigo. O fato é que seja “na mão”, ou pela lei escrita, a regra em que o mais forte vence de alguma forma, prepondera e permanece no inconsciente masculino. O macho perdedor em geral, é banido do grupo, coisas que fêmeas não costumam fazer pois não vivem uma relação com seu grupo, de pertencimento leal. Fêmeas se permitem elos e inter-elos sem perderem a noção de individualidade. Mantém a capacidade de trocar a qualquer momento de bando, cidade, país, adotando e sendo adotada por diferentes territórios. Mas se a maior parte do amor é fruto de construções culturais e biológicas, onde reside o real amor?
Do amor e sua morada
O mais elevado dos pensadores, o físico mais renomado, o astronauta mais auspicioso, o mais sensível dos poetas, o mais consistente dos dramaturgos, todos eles poderiam descrever o estado de amar. No entanto qualquer pessoa de costume simples, sem erudição ou mesmo com comprometimentos neuro-funcionais é capaz de sentir-se amada e de amar pois que todas pessoas são capazes de acessar o amor. O difícil talvez seja enumerar as diferentes e possíveis formas de amar. Como as inúmeras estrelas e galáxias, é impossível mapear esse sentimento por conta da complexidade dos seres humanos e de suas múltiplas combinações nervosas e – acrescento- sensíveis, biológicas e culturais. Resta então elencar esse amor mais sublime. E para isso encorajo-me a dizer que ” amar é a única experiência capaz de criar a ideia de Deus e propiciar a experiência com a divindade, com o sagrado”. O Deus humano bebe nos diferentes tipos e manifestações de amor a sua potência de ação entre os homens. Por se tratar do MEU ensaio, declaro que o amor mora no caos do ser humano e, ao mesmo tempo, na sua eternidade. O amor explica e constitui os elos que não se desfazem. Reside nas coisas e eventos que se sobrepõem ao tempo, aos ventos, às dimensões, ao espirito. Um amor seria capaz de atravessar vidas? Pouco provável dado o instinto de apego que temos a quem somos no presente, mas eu não diria que é impossível. Penso que o amor se sobrepõe à matéria e ao corpo físico. É com essa teoria que explico um homosexual do sexo masculino amar uma mulher de verdade e um homem heterosexual ser capaz de amar outro homem. Amor nada se relaciona com perpetuação das espécies. Somos muito provavelmente bissexuais por natureza, pois a libido existe a partir de um elo e esse elo pode surgir com vários formatos e com várias nuances, ditada única e exclusivamente pelo conjunto de necessidades e/ou experiências positivas que passamos a ter com cada ser na terra. Quando o amor nasce do conjunto de necessidades ou experiências negativas, temos um amor perverso, que à priori funciona de igual maneira para que o possui porém impacta de forma muito adversa os meio onde aparece. De todo jeito, fica claro aqui como as formas de amor helicoidais.
Dos amores
Acordo com dois amores no peito.
Um me lembra dos desenganos de amar,
o outro imprimi ao momento, uma presença etérea.
Amo um alguém como nunca amei. Essa frase é cem por cento verdadeira. Nunca amamos da mesma forma. Mudamos a todo instante. Bilhões de estrelas se extinguindo no universo e a cada momento de renovação celular, o homem se perpetua no estado de amar. Na cultura em que vivemos podemos dar nome aos nossos amores. Eu particularmente, elejo alguns amores ao status de “almas companheiras”. Uma alma companheira não depende e nem pede corporeidade. A presença desse amor dentro da minha alma, tem tanta potência que não precisa de convívio, razão, ou contato físico, sequer contato. É uma experiência única onde elos flutuam enquanto as almas seguem suas relações menos sagradas. Quando abraço uma alma companheira, descanso o espirito e recarrego ele para a jornada longa da eternidade. Poucas coisa se aproximam dessa experiência. A música as vezes consegue chegar perto de definir isso, a dança imita o movimento e a poesia o descreve o estado de torpor amoroso com as metáforas. A arte garante ao ser humano de forma única concretizar essa experiência tão humana.
Amar em tempos de capitalismo
O amor aculturado nada tem de amor , muito tem de business. Junto da ideia de casal vem a da monogamia, a do amar para sempre e a ilusória da segurança no elo fruto do amor. Nenhum elo é estável, amar é por essência o balançar na corda bamba. Perseverar no amor é manter-se na corda, voltando depois de cada queda. Não quer dizer que as cordas do amor não possam ser rompidas. As escolhas ditam em quais cordas andaremos e quais deixaremos para trás, e também aquelas que se instalarão permanentes em nosso íntimo. Desdobramentos do amor também existem. Outros sentimentos podem surgir no lugar dele. Muito próximo ao amor está o ódio, sentimento capaz de ruir a alma. O ódio é uma das manifestações sombrias do amor e não é menos potente. Ele tem suas raízes nos sentimentos ególatras podendo ser entendido como um sentimento retro-egoico. Ao negar a oscilação que o amor causa na alma, ao negar o impacto transformador sem precedentes que o amor pode implicar em uma pessoa, o ódio -ego centrado- e o egoismo costumam surgir com vigor. Tão aniquilador quanto amoroso, o ódio busca eliminar o caos, dar fim ao êxtase e instituir a estabilidade por meio do controle, por meio do ‘casal’ , do ‘casamento’, do ‘namoro’, do ‘noivado’… A simbiose eterna, apegada à forma e nada ligada à essência, como se fosse possível instituir grades invisíveis em torno do abjeto amado o deslocando para lá e para cá conforme nos seja mais conveniente. Lembro agora do livro “De Pessoa a Pessoa” ( Hicner) onde esclarece sobre relações Eu-Tu e Eu-Isso, baseado no pensador Matin Bubber.
Outros tipo de amor
Entrando no campo do anti amor, falaremos das sombras do amor, dos amores insanos e afins. Esses são mais conectados com a pele, vias dérmicas. Alguns amores são mantidos pelo tato, olfato, paladar e ouvidos. Amar o corpo do outro de forma insana é como beber repentinamente muita água em dia de calor após uma corrida: enquanto se bebe água, seguramos a falta de fôlego para seguir engolindo água de forma afoita até que o estômago anuncie o exagero e a pessoa tenha por garantida a sobrevivência e o prazer da saciedade. Tem o amor egoísta, mas esse merece um escrito à parte porque ele é muito ancestral e aparece nos mitos de forma muito clara.
Do amor de Narciso
Busquei no mito de Narciso explicação para o amor egoísta: o grande vilão da atualidade. Poucos escapam dessa forma de amor: o amar a si mesmo. Amor venerado, regado a uma sutil auto idolatria. Amar o espelho e desprezar qualquer forma que não se assemelhe ao reflexo de si é também uma forma de amar. Talvez um pouco deformado, esse amor egoico é uma espécie de amor próprio em doses altas demais, incitando a vaidade que é aliás um dos sete pecados capitais.
Conhecendo a história de Narciso, ficamos sabendo que ele era um jovem muito bonito e jamais poderia olhar a própria beleza sob o perigo de perder o controle de seus sentimentos. Junto ao atributo da beleza, Narciso também possui prepotência e arrogância. Conta o mito que certo dia a ninfa Eco se aproximou do jovem apaixonando-se pela beleza do rapaz conforme acontecia com todas pessoas.
Imagem retirada do site: https://thebooksguardian.altervista.org/la-leggenda-di-eco-e-narciso-da-dove-viene-il-termine-narcisismo/
Essa ninfa de voz encantadora, no momento em que se apaixona por narciso, estava sob efeito de uma maldição: a ecolalia. Hera, a mulher de Zeus, amaldiçoara essa ninfa porque ela havia ajudado Zeus- marido de Hera- a escapar da sua esposa após traí-la com outras ninfas. Foi amaldiçoada com a ecolalia. Eco não podia falar, estava fadada a apenas repetir as últimas palavras daquilo que ouvisse. Sob efeito da ecolalia, caiu de amores por narciso. A ninfa, por vergonha de sua incapacidade de conversar com o rapaz de forma natural, não se atreveu a mostrar-se a ele. Narciso percebeu a presença da ninfa e sem saber quem era, conseguia apenas ouvi-la repetindo suas últimas palavras. Sem saber da ecolalia e sem poder contemplar a face da moça, caiu de amores pela voz de Eco. Entristeceu-se por não vê-la ou tê-la por perto. Tal angústia fez com que ele se aproximasse do rio. Narciso havia sido advertido ao ganhar o dom da beleza, que jamais poderia contemplar sua própria imagem pois se apaixonaria por si próprio. Ao chegar ao lago para chorar de tristeza pela ninfa Eco, viu sua imagem refletida nas águas e apaixonou-se perdidamente. Conforme avisara sua mãe, apaixonou-se pela imagem a ponto de não perceber que era ele próprio. Queria se juntar aquilo que via com toda suas forças. Mergulhou nas águas pra ter a si mesmo e afogou-se. Eco sentiu muita culpa e vendo a cena jogou-se também no rio sumindo junto com Narciso. Conta o mito, que ela transformou-se e um rochedo e ela, em uma flor. A mitologia não poupa à narrativa nenhum detalhe. Crueldades, castigos, maldições e vinganças se misturam com paisagens naturais, estações do ano, ventos, colheita, flores, rios e fenômenos naturais. A partir desse mito podemos pensar nesse espectro do amor que faz com que nos prendamos à nossa própria imagem e desejo, servindo ao orgulho numa auto-destruição que amaldiçoa e não eleva. Desse amor nasce a vingança, discórdia , morte. O amor narcísico é a vaidade vestida de amor, capaz de matar e aprisionar qualquer sincera alma. A vaidade move o homem como força motriz que junto ao orgulho arruína o mais generoso coração. Alguns são incapazes de desenvolver amor ao outro que não seja amor que vê em si mesmo a perfeição que o outro deve alcançar e assim ama apenas seus bajuladores ou seu projetivo “reflexo constante”.
Já amei como uma ninfa,
Já amei narcisos
Já fui Narcisos…
Poeticamente posso descrever o estado de amar uma pessoa narcísica, enquanto ouço Monteverdi
Eu o amava porque o idolatrava com a hipocrisia dos vaidosos
E o amava como quem desfilava o leito do rio Estige
Negando a mim como quem abandona o barco do Caronte desafiando a travessia.
O amava e fazia da vaidade dele o mote do meu cortejo,
mantendo-o controlado em luxúria e êxtase
mas sem jamais poder revelar-lhe a sua própria imagem de arrogância e desprezo
O amava fazendo eco das suas insanas verdades
para que permanecesse ao meu lado
E o amava que me vi transformada em flor no rochedo
Para que o rio deslizasse por entre minhas peles de pedra
onde congelei-me na água da realidade
da impossibilidade
de viver
o amor.
Acabar o ensaio com canções de amor pode parecer um lugar comum, mas de todo o ensaio, a conclusão é que o amor é um grande e prestimoso lugar comum. Então, acabo com uma das canções mais lindas que conheço, fruto do amor de um pai por uma filha, singular em traduzir e expressar o amor… ” Canção pra Jade” ( Toquinho)
Desde quando eu te vi Tudo ficou mais lindo: A rua, a lua, o sol no céu luzindo. Olhando teu olhar, Ouvindo a tua voz Chego a não crer, A me surpreender, feliz, sorrindo.
Estrela singular Da luz do amor nascida. Antieclipse lunar da minha vida. A cada passo teu Segue meu coração, Por entre os móveis, Calçadas, parques e avenidas.
Viva cada instante, viva cada momento, Proteja da razão teu sentimento. Tente ser feliz enquanto A tristeza estiver distraída. Conte comigo A cada segundo dessa vida.
E o tempo vai passar Ao longo dessa estrada. Novas estórias lhe serão então contadas. E você vai crescer, Sonhar, sorrir, sofrer Entre vilões, moinhos, dragões e poucas fadas.
Falar de paixão não cabe mais nos tempos de agora.A juventude depois que passa leva embora os rompantes mas deixa algo no lugar. A capacidade de estar em sintonia fina com o outro e não com o desejo, a plenitude de amar de forma inocente e ainda erótica. A plenitude de doar-se sem perder-se e de aceitar sem ser invadido.
Outra noite tive um sonho…
“Um rapaz branco, olhos miúdos, chamado Noa, me acordava no meio da noite, trêmulo de febre. Peguei meu termômetro de medir coração. Era uma febre de alta emoção, uma doença rara. Eu, médica recén formada e inexperiente, achei que devia apenas medicá-lo com um abraço. Ele, paciente confuso, optou por aceitar minha medicação. Não havia pernas firmes para fugir dali e tão pouco havia ânimo. Ele não movia o corpo. Sua estática face ante meus exames clínicos revelavam seu estado de amor contido. Havia ele, por muitos anos, colocado seu coração entre grades e nunca mais foi visitar. Isso foi a causa da alta emoção e da consequente febre. Os prognósticos porém, no seu caso, eram os melhores. Primeiro porque o remédio indicado não trazia efeito colateral algum. Segundo porque logo que as chaves para controlar a tal doença, lhe fossem dadas, a febre sumiria. Em pouco tempo o rapaz estava recobrando os sentidos e sentiu-se amado ( medicado e em estado de cura). Em seguida o rapaz percebeu que podia agradecer o remédio e subitamente, brotoejas começaram a brotar em suas bochechas. Eram brotoejas de amor contido. Ele rompe o silêncio: Se move e pede ao meu ouvido, causando-me arrepios, que as tais brotoejas fossem embora. Eu, médica, já formada no seu caso, toquei-lhe os lábios e apliquei-lhe um curativo com meus próprios lábios. As brotoejas sumiram.”
Tudo virou uma lenda na região. Quando há alguém doente de amor, conto esse sonho e digo que devemos sair por aí, experimentando algumas curas, certos de que o amor cura, e que abraçar além de curar, evitar a dor.
Ainda possuo alguma liberdade de ir e vir; tenho uma boa cama, lençóis macios para dormir e bom ânimo.
Atravessar a fronteira do meu país foi mais fácil que pensei.
Não falo da fronteira territorial mas da ideia de “vencer a fronteira”. Como uma espécie de guerrilheiro, me coloco à prova da coragem para atravessar o terrritório da cultura e da língua. Ratifiquei o que eu já sabia: Minha facilidade de me comunicar transcende o idioma e as diferenças culturais.
Montevidéo possui uma arquitetura velha, cheia de oponência e beleza. As pessoas aqui me parecem mais ensimesmadas e é como se houvesse uma certa resignação usada pelas pessoas ao conversarem. O tom de voz que escuto nas conversas que tento espionar é apenas o necessário para alcançar o interlocutor alvo, o que me frustra.
Comprei um livro infantil
Me identifiquei com o tema de um livro infantil que achei em uma livraria. Gostei da poética da história, dos desenhos…
Ao ler estranhei duas palavras que, à princípio, não encaixavam na sentença. “Pena” e “estrujar”. Eram temas chave para que eu entendesse o fim da narrativa, que era um tanto quanto lírica e metafórica . Resolvi perguntar ao vendedor de livros da livraria que ficava bem no meio do saguão do Teatro Solís. “Pena”, segundo ele seria uma espécie de tristeza misturada com saudade. Já ” estrujar”, esmagar e oprimir por dentro. Além de entender a história me comovi com o singelo desfecho e comprei o referido livro por 440 pesos.
Antes de entrar no vistoso teatro atrás de ingressos já esgotados e antes de encontrar o livro sobre o mar de lágrimas de Emma, passei por uma praça. Havia um evento público, algo natural como uma batalha de rap no Brasil. Nesse evento, velhos e velhas dançavam tango como seus pares ou com quem quisesse dispor de uma dança descontraída. Deixei-me dançar. Dei-me a um senhor que me conduziu com de forma leve e eficiente. Ao sair da dança me direciono ao bonito teatro e tenho um encontro: Prólogo do livro que eu viria a comprar…
O encontro
Uma mulher de meia idade, sem dentes com um cachecol amarelo me aborda na praça em frente ao teatro. Pede moedas para comer e dar comida ao seus filhos. Pede muitas vezes ao senhor ao meu lado e demora a olhar para mim. Após muitas recusas do senhor, ela olha para mim com olhos cheios de lágrimas. Eu, acostumada ao ritual de pedintes no Brasil, efetivo o o ato da recusa. Mas a mulher de meia idade e cachecol mantinha seus olhos grudados em mim e ocorreu-me oferecer-lhe algo. Concomitante à minha intenção de não ignorá-la, um resto de consciência me dizia que moedas não a tirariam daquele estado, não a tirariam dali e tão pouco colocariam dentes em sua boca. Resolvi num impulso sincero e autêntico, com meu portunhol raso, pedir permissão para dar a ela uma abraço. Com cuidado e delicadeza a abracei e ela então, deixou-se abraçar. Diferente dos pedintes daqui, ela tinha um perfume suave e gostoso. Era uma mulher magra, limpa e não só aceitou o abraço, como deixou sua cabeça cair sobre meu ombro e chorou muito. Procurei não racionalizar aquele momento, afinal eu estava ali para dar e não para ler o que acontecia. Senti seu calor, seu corpo magro e meu ombro molhar. Em determinado momento, ela suspira e digo ” ficará tudo bem…” Ela arrisca um último cochicho e diz que tem câncer. Se esse dado era verdadeiro não sei. Sei que seu corpo sendo abraçado por mim era extremamente real. Concentrei-me nisso fui embora sem nada a dizer.
O livro que comprei em seguida falava de um mar de lágrima e, estranha coincidência: Acabava com um econtro e um abraço.
Se não fosse o quase, a gente não teria decidido, juntos, perguntar ao seu Aurélio o que ouvia no seu celular enquanto olhava o horizonte do parque, sentado em um banco de madeira. Eu e Matheus nos conhecemos pessoalmente naquele dia. Escolhemos o mais importante parque da cidade. Uma tarde muito ensolarada e uma meta: Provocar um encontro.
Eu e Matheus sempre nos confrontamos com pessoas e suas histórias. Não era nenhuma experiência peculiar na nossa existência visto que contadores de causos existem em todos cantos e seus interlocutores também. O que havia de extraordinário naquela tarde era escolhermos um local para provocar um encontro com alguém aleatório. Como provocar o encontro, era para nós uma incógnita. Permanecemos também incógnitos até sentarmos nos degraus de uma escada e vermos seu Aurélio, com fones de ouvido, sentado em um banco de madeira. O que nos fazia diferentes de coletores de histórias, antropólogos, jornalistas ou similar, era um compromisso sutil e semi-místico de deixar fluir um encontro de forma natural sem almejar nada objetivamente. O homem sentado em frente ao lago nos impulsionou. Foi assim, de forma natural, que perguntamos…
O que o senhor está escutando?
Rádio! Eu ouço sempre um programa evangélico.
Seu Aurélio não precisou muito para iniciar a contação de suas coisas e memórias. Poucas vezes eu e Matheus precisamos indagar algo. Depois de muita conversa e depois de sabermos que seu Aurélio morava sozinho em um albergue da prefeitura, que perdera contato total com a família e que ela, em determinado momento, o deixou de lado; depois de sabermos que havia tido esposa, amigos, casa, e que perdera muita coisa num puteiro induzido por amigos a gastação com farras e álcool, ocorreu perguntar:
Se o senhor pudesse desjar algo, um sonho… qual seria, hoje, seu sonho de vida?
Ahhh … Meu sonho é ser pipoqueiro. Ter meu carrinho de pipoca e vender, ganhar meu dinheiro. Não precisava muito. Só um algum dinheiro que eu pudesse ganhar com o carrinho todos os dias.
Nossa! O senhor já trabalhou com isso, gosta de fazer pipocas?
Não…não sei ainda.
O que seu Aurélio nos apresentava era algo simples: Um desejo bem delimitado.
As sua histórias eram cheias de acontecimentos do passado e alguns recentes. Mas talvez de tudo que seu Aurélio tenha nos contado, as suas tentativas de tirar a própria vida foram as coisas mais existencialmente comoventes. Não no sentido de despertar pena, mas no sentido da lógica que aplicava ao dizer que “se não fosse o quase…” ele não estaria aqui. Se referiu a isso pois em todas tentativas algo o impediu. Uma vez foi a arma que não funcionou, outra vez alguém chegou. Isso sim nos lembrava que a lógica do “quase” também cabe na nossa vida. Pensamos nas vezes que se não fosse o quase tudo mudaria de rumo…
Era mesmo algo a se pensar permanentemente…
Seguimos….
Protagonizando a aproximação de seu Aurélio com o objeto do seu desejo vital, avistamos um carrinho de pipoca no parque e propomos comprar um pacote de pipocas para ele. Aceitou com naturalidade. Caminhamos até o carrinho e logo a vendedora de pipocas contou-nos também um pouco de sua história. Depois de sabermos que a pipoqueira era uma mulher de quarenta e poucos anos que aceitou a proposta incial de tocar o carrinho de pipocas apenas aos domingos visto que inicialmente o carrinho era apenas um pretexto para um traficante ter seu ponto nas proximidades do parque; depois de sabermos que ela não sabia fazer pipoca e que incialmente recusara a proposta e que – depois- pediu que alguém a ensinasse e enfrentou o aprendizado, e com trabalho, aos poucos foi conquistando o carrinho para si. Depois disso tudo, contamos a ela do sonho de seu Aurélio. Ela ficou visivelmente feliz em saber. Olha com doçura para seu aurélio e sorri. Como quem serve ao amigo um copo de cerveja, ela olha para ele e oferece:
O senhor quer que eu o ensine a fazer pipoca? Venha! O senhor fará a próxima pipoca! Vou lhe mostrar como é fácil!
O inusitado encontro entre a mulher de meia idade e o senhor sem família aconteceu naturalmente e eu e meu amigo Matheus, percebendo a deixa para uma saída natural, apenas com um olhar, decidimos de forma não verbal, que era hora de seguirmos em frente para outro encontro…
…e seguimos para a casa gigante do outro lado do parque.