RE(A)MAR

Ficcionar a vida pode ser um ato libertário…

pés 2

Tanto quanto criar é um movimento arbitrário de realidade interna.

Agora negar o auto-biográfico, seria sim uma falácia literária.”

PRÓLOGO DO AMOR

              Eu que morava na montanha, certo dia me aventurei em alto mar… Foi num barquinho, na base da contemplação do sol, que ancorei minhas preces pelo tempo que pude remar. Moro na montanha, entre seu cume e seu pé. Moro bem ali, na lida entre ida e vinda. Moro na pedra que rala, que escorrega e que firma. Ali onde a gravidade transita. Moro na andança da contemplação durante a caminhada. Moro dentro da minha montanha azulada, bem em frente ao que resta do mar.   

 

DA REMAÇÃO, DA REMARIA

         Já foi ontem que tudo era. No princípio era um balãozinho vermelho, hoje são panos rasgados e alguma lantejoula que ainda brilha. Ontem era a andança e o peso de correntes marítimas, agora desliza. Foi que um dia larguei o leme, os remos… Fiquei ali: Olhando as ondas à deriva, olhando o sol se pondo. Observei o sol e sua quentura acabando até o entardecer completo. Quando virou noite, antes de olhar pra lua cheia, voltei à superfície das minhas próprias marés. Andar com aquele barco de madeira molhada era enfrentar o oceano. Na verdade eu olhava pela fresta da madeira o horizonte lá adiante. Fixava tanto os olhos nele que só via o sol luzindo na água. Mais nada. O entorno à fresta que eu escolhi pra espiar, eu deixei de lado.  O espaço que emoldurava a visão do sol eram dois pedaços de uma madeira velha em ruínas. Lá fora só a profundidade do mar. Eu sabia que não me afogaria, mas queria ainda sim deixar o barco sem precisar  arriscar a vida em alto mar. Teve uma vez que quase pulei na água. Depois voltei atrás. Por algum tempo também falei uma língua que ninguém ouvia. O mar só prestava atenção nos meus fonemas. Confuso e sóbrio, ele sorria. O mar foi um ‘senhor cidadão’ naquele tempo de “remaria”. Rezava eu, preces e mais preces. Jejuava na base da Ave Maria’. Ancorava a alma na ideia de um milagre como se não soubesse que estar ali no barco já o era. Ocorre que nem todo passeio em alto mar é uma viagem possível. Na verdade nunca é, a não ser naquelas histórias de aventuras piratas onde tripulações inteiras se unem pra colocar o navio no eixo, mesmo assim não se eximindo de sucumbir à tempestades.

DO DESENROLAR DA METÁFORA

            Você leitor deve estar se perguntando que tipo de metáfora é essa e pra que essa ladainha marina… Eu só queria dizer que chegar ao fim de um relacionamento sempre é denso, escuro, uma saída noturna de um lugar em alto mar. Mas que essa saída ainda sim está submersa a um céu estrelado, plausível de lua cheia, luz e calmaria. Queria dizer que deixar alguém pra trás é como largar os remos de um barco e se colocar à deriva novamente. Queria dizer que não é nem triste ou feliz, é um movimento desatinado de voltar à praia e ancorar a alma na montanha. Queria só dizer o como é bom voltar para casa das minhas caminhadas.

Foto dos pés da Bárbara Trelha. Meus pés na praia do Campeche e pedra na praia da Joaquina em Florianópolis- SC
Foto dos pés da Bárbara Trelha.
Meus pés na praia do Campeche e pedra na praia da Joaquina em Florianópolis

PALAVRA

 

      Quando eu tinha oito anos, em uma  tarde normal,                              eu recebi um livro especial….

livro

A cidade era Pelotas, no Rio Grande do Sul. Era ela quem abrigava minha infância. Eu era uma criança curiosa. Era quieta por fora e inquieta por dentro. Era uma menina observadora. Estudava na Escola Estadual Dom Joaquim Ferreira de Mello. Lembro-me que rezávamos todos os dias antes da aula: “Ave Maria cheia de graça…” Era um rito; todos nós em pé, enfileirados ao lado da classe. Muitas coisas acontecem na escola. Lembro claramente da primeira vez que a professora me chamou atenção na sala de aula por eu estar conversando demais. Eu tinha seis anos e senti muita vergonha. Mas era raro eu levar bronca. Sempre fui de fazer o que me pediam direitinho. Até hoje sou assim. Em geral eu cumpria minha função e em paralelo tinha meu mundo de pensamentos que eu pouco  repartia. Ainda hoje, pouco o compartilho com o mundo.

Naquela tarde normal minha turma na escola foi chamada para descer até o salão. Eu estudava no andar de cima e ainda lembro o prazer que eu tinha em descer as escadas. Descia muito rápido e apostava comigo mesma cada vez quem descia mais rápido: ‘pé direito ou pé esquerdo?’ Me sentia muito hábil nos degraus, forte… rápida! No salão, o pessoal de uma editora, distribuía livros acompanhados de rifas. Podíamos levar os livros que escolhêssemos, em quantidade de três por bloco de rifa. Junto de cada trio de livros, a rifa ia junto com intuito de que as crianças vendessem os números. Assim os livros poderiam ficar conosco e, caso não vendêssemos, pagaríamos por eles. Eu escolhi três!  Um deles me chamou mais atenção: Era um livro com balões de fala em branco. As imagens possuíam uma certa narrativa mas o leitor é que criaria a escrita, a história. Vendi as rifas e passei, daquele dia em diante, a levar o livro de balões em branco para a cama. Depois que todos adormeciam, eu pegava um lápis e meu livro- que estavam embaixo das cobertas- e os abria. A insônia – esqueci de dizer- foi minha companheira até eu ficar adulta. Era nessas horas, entre o sono que nunca vinha e a vigília, que eu usava a luz azulada que escapava do quarto dos meus pais, trazida da televisão  por uma vidraça- que eu mergulhava na minha criação. Aquele livro marcou minha infância e de certa forma abriu uma porta. Virou um enorme balão a ser preenchido pela minha fala.  A partir daí, contar coisas e escrevinhar-me passou a ser rotineiro, íntimo, rito de sonho e remédio pra qualquer insônia ou angustia. A partir daí a escrita não conteve mais minha mão e eu passei a existir de forma mais ampla. As coisas das palavras foram tomando proporções cada vez maiores.

   A linguagem  emancipou minha alminha de oito anos e eu, de palavra em palavra,

                                                                                                    me refiz verbo.