Quando eu tinha oito anos, em uma tarde normal, eu recebi um livro especial….
A cidade era Pelotas, no Rio Grande do Sul. Era ela quem abrigava minha infância. Eu era uma criança curiosa. Era quieta por fora e inquieta por dentro. Era uma menina observadora. Estudava na Escola Estadual Dom Joaquim Ferreira de Mello. Lembro-me que rezávamos todos os dias antes da aula: “Ave Maria cheia de graça…” Era um rito; todos nós em pé, enfileirados ao lado da classe. Muitas coisas acontecem na escola. Lembro claramente da primeira vez que a professora me chamou atenção na sala de aula por eu estar conversando demais. Eu tinha seis anos e senti muita vergonha. Mas era raro eu levar bronca. Sempre fui de fazer o que me pediam direitinho. Até hoje sou assim. Em geral eu cumpria minha função e em paralelo tinha meu mundo de pensamentos que eu pouco repartia. Ainda hoje, pouco o compartilho com o mundo.
Naquela tarde normal minha turma na escola foi chamada para descer até o salão. Eu estudava no andar de cima e ainda lembro o prazer que eu tinha em descer as escadas. Descia muito rápido e apostava comigo mesma cada vez quem descia mais rápido: ‘pé direito ou pé esquerdo?’ Me sentia muito hábil nos degraus, forte… rápida! No salão, o pessoal de uma editora, distribuía livros acompanhados de rifas. Podíamos levar os livros que escolhêssemos, em quantidade de três por bloco de rifa. Junto de cada trio de livros, a rifa ia junto com intuito de que as crianças vendessem os números. Assim os livros poderiam ficar conosco e, caso não vendêssemos, pagaríamos por eles. Eu escolhi três! Um deles me chamou mais atenção: Era um livro com balões de fala em branco. As imagens possuíam uma certa narrativa mas o leitor é que criaria a escrita, a história. Vendi as rifas e passei, daquele dia em diante, a levar o livro de balões em branco para a cama. Depois que todos adormeciam, eu pegava um lápis e meu livro- que estavam embaixo das cobertas- e os abria. A insônia – esqueci de dizer- foi minha companheira até eu ficar adulta. Era nessas horas, entre o sono que nunca vinha e a vigília, que eu usava a luz azulada que escapava do quarto dos meus pais, trazida da televisão por uma vidraça- que eu mergulhava na minha criação. Aquele livro marcou minha infância e de certa forma abriu uma porta. Virou um enorme balão a ser preenchido pela minha fala. A partir daí, contar coisas e escrevinhar-me passou a ser rotineiro, íntimo, rito de sonho e remédio pra qualquer insônia ou angustia. A partir daí a escrita não conteve mais minha mão e eu passei a existir de forma mais ampla. As coisas das palavras foram tomando proporções cada vez maiores.
A linguagem emancipou minha alminha de oito anos e eu, de palavra em palavra,
me refiz verbo.