Sonho

Falar de paixão não cabe mais nos tempos de agora. A juventude depois que passa leva embora os rompantes mas deixa algo no lugar. A capacidade de estar em sintonia fina com o outro e não com o desejo, a plenitude de amar de forma inocente e ainda erótica. A plenitude de doar-se sem perder-se e de aceitar sem ser invadido.

Outra noite tive um sonho…

“Um rapaz branco, olhos miúdos, chamado Noa,  me acordava no meio da noite, trêmulo de febre. Peguei meu termômetro de medir coração. Era uma febre de alta emoção, uma doença rara. Eu, médica recén formada e inexperiente, achei que devia apenas medicá-lo com um abraço. Ele, paciente confuso, optou por aceitar minha medicação. Não havia pernas firmes para fugir dali e tão pouco havia ânimo. Ele não movia o corpo. Sua estática face ante meus exames clínicos revelavam seu estado de amor contido. Havia ele, por muitos anos, colocado seu coração entre grades e nunca mais foi visitar. Isso foi a causa da alta emoção e da consequente febre.  Os prognósticos porém, no seu caso, eram os melhores. Primeiro porque o remédio indicado não trazia efeito colateral algum. Segundo porque logo que as chaves para controlar a tal doença, lhe fossem dadas, a febre sumiria. Em pouco tempo o rapaz estava recobrando os sentidos e sentiu-se amado ( medicado e em estado de cura). Em seguida o rapaz percebeu que podia agradecer o remédio e subitamente, brotoejas começaram a brotar em suas bochechas. Eram brotoejas de amor contido.  Ele rompe o silêncio: Se move e pede ao meu ouvido, causando-me arrepios, que as tais brotoejas fossem embora. Eu, médica, já formada no seu caso, toquei-lhe os lábios e apliquei-lhe um curativo com meus próprios lábios. As brotoejas sumiram.”

Tudo virou uma lenda na região. Quando há alguém doente de amor, conto esse sonho e digo que devemos sair por aí, experimentando algumas curas, certos de que o amor cura, e que abraçar além de curar, evitar a dor.

 

 

Um mar de Lágrimas

 

Ainda possuo alguma liberdade de ir e vir; tenho uma boa cama, lençóis macios para dormir e bom ânimo.

    Atravessar a fronteira do meu país foi mais fácil que pensei.

    Não falo da fronteira territorial mas da ideia de “vencer a fronteira”. Como uma espécie de guerrilheiro, me coloco à prova da coragem para atravessar o terrritório da cultura e da língua. Ratifiquei o que eu já sabia: Minha facilidade de me comunicar transcende o idioma e as diferenças culturais.

    Montevidéo possui uma arquitetura velha, cheia de oponência e beleza. As pessoas aqui me parecem mais ensimesmadas e é como se houvesse uma certa resignação usada pelas pessoas ao conversarem. O tom de voz  que escuto nas conversas que tento espionar é apenas o necessário para alcançar o interlocutor alvo, o que me frustra.

Comprei um livro infantil 

        Me identifiquei com o tema de um livro infantil que achei em uma livraria. Gostei da poética da história, dos desenhos…

Ao ler estranhei duas palavras que, à princípio, não encaixavam na sentença. “Pena” e “estrujar”. Eram temas chave para que eu entendesse o fim da narrativa, que era um tanto quanto lírica e metafórica . Resolvi perguntar ao vendedor de livros da livraria que ficava bem no meio do saguão do Teatro Solís. “Pena”, segundo ele seria uma espécie de tristeza misturada com saudade. Já ” estrujar”, esmagar e oprimir por dentro.  Além de entender a história me comovi com o singelo desfecho e comprei o referido livro por 440 pesos.

      Antes de entrar no vistoso teatro atrás de ingressos já esgotados e antes de encontrar o livro sobre o mar de lágrimas de Emma, passei por uma praça.  Havia um evento público, algo natural como uma batalha de rap no Brasil. Nesse evento, velhos e velhas dançavam tango como seus pares ou com quem quisesse dispor de uma dança descontraída. Deixei-me dançar. Dei-me a um senhor que me conduziu com de forma leve e eficiente. Ao sair da dança me direciono ao bonito teatro e tenho um encontro: Prólogo do livro que eu viria a comprar…

       O encontro

Uma mulher de meia idade, sem dentes com um cachecol amarelo me aborda na praça em frente ao teatro. Pede moedas para comer e dar comida ao seus filhos. Pede muitas vezes ao senhor ao meu lado e demora a olhar para mim. Após muitas recusas do senhor, ela olha para mim com olhos cheios de lágrimas. Eu, acostumada ao ritual de pedintes no Brasil, efetivo o o ato da recusa. Mas a mulher de meia idade e cachecol mantinha seus olhos grudados em mim e ocorreu-me oferecer-lhe algo.  Concomitante à minha intenção de não ignorá-la, um resto de consciência me dizia que moedas não a tirariam daquele estado, não a tirariam dali e tão pouco colocariam dentes em sua boca. Resolvi num impulso sincero e autêntico, com meu portunhol raso, pedir permissão para dar a ela uma abraço.  Com cuidado e delicadeza a abracei e ela então, deixou-se abraçar. Diferente dos pedintes daqui, ela tinha um perfume suave e gostoso. Era uma mulher magra, limpa e não só aceitou o abraço, como deixou sua cabeça cair sobre meu ombro e chorou muito. Procurei não racionalizar aquele momento, afinal eu estava ali para dar e não para ler o que acontecia. Senti seu calor, seu corpo magro e meu ombro molhar. Em determinado momento, ela suspira e  digo ” ficará tudo bem…” Ela arrisca um último cochicho e diz que tem câncer. Se esse dado era verdadeiro não sei. Sei que seu corpo sendo abraçado por mim era extremamente real. Concentrei-me nisso fui embora sem nada a dizer.

    O livro que comprei em seguida falava de um mar de lágrima e, estranha coincidência: Acabava com um econtro e um abraço.

Só agora 

Ao escrever sobre esses meus breves passos

      Para além da fronteira

é que entendi o acaso

Ser o livro a metáfora em concreto estado

E do meu encontro

estar de certa forma,

      na história já narrado.

Montevidéo, 4 de Março. Praça, Teatro, abraço.