364 palavras de adeus

ilustração de "The Premature Burial (1844) by Edgar Allen Poe

 

 

Voltar à lida das minhas miragens é como ficar imóvel diante da dureza da minha alma. Tudo está quieto. Não movo o sorriso, não há vento, não me movimento, não há nenhum pedido de socorro.

A morte é uma silenciosa manhã que nunca chega.

Me machuquei com essa nossa história de não amor. Fiquei com um estilhaço dentro da pele e isso sangra. Queria esfregar o sangue desses tantos cortes no teu rosto que morre na minha lembrança. Queria ver no seu corpo o cheiro forte do sangue que escorre das minhas palavras. Queria fazer rugas brotarem nos seus ossos, e de toda sua ossatura, fazer uma velharia flácida- magra, extinta e póstuma. Tudo isso para ver se a vida voltava. Queria apagar o passado e acordar no dia em que fui embora pela primeira vez. Queria ficar na horizontalidade da escolha banal de te desprezar.  Fico agora rondando a inércia de não- te-amar. Confesso que ficou esse seu não amor me fazendo mal. Ficou todo o rascunho, apagado de borracha no rasgo do papel. No verso da folha, eu de vez em quando leio. Leio e releio as vezes que inventei de olhar o escuro acreditando na conversão da sombra em luz, as vezes que fiquei procurando alguém que não havia. Dei de cara com um rato molhado num canto sepulcro. Sozinha, vi que não havia sequer um rastro teu.  Eu não sabia que tuas sapatilhas pontiagudas pesariam tanto na minha alma branda, que espancariam minha feminilidade. Envelheci de tanto não falar sua língua. Fiquei feia de tanto ouvir teus não dizeres de amor. Fiquei fria de tanto não ganhar da tua carne as profundezas sagradas do toque. Foi uma lista de infâmias essa nossa história que não dissolvia. Foi um assalto à minha existência, d’onde adormeci criança e acordei morrendo. Foi um tempo de esforço quase sem passo. Não queria me sentir esse pedaço de terraço frio, sem mote. Queria estar inteira sem esse troço. Queria não estar como a garganta tonta, com a voz rouca, com esse eco estático que restou. Queria me sentir livre, como eu realmente sou. Sair inteira dessa nossa história que nunca começou.

RE(A)MAR

Ficcionar a vida pode ser um ato libertário…

pés 2

Tanto quanto criar é um movimento arbitrário de realidade interna.

Agora negar o auto-biográfico, seria sim uma falácia literária.”

PRÓLOGO DO AMOR

              Eu que morava na montanha, certo dia me aventurei em alto mar… Foi num barquinho, na base da contemplação do sol, que ancorei minhas preces pelo tempo que pude remar. Moro na montanha, entre seu cume e seu pé. Moro bem ali, na lida entre ida e vinda. Moro na pedra que rala, que escorrega e que firma. Ali onde a gravidade transita. Moro na andança da contemplação durante a caminhada. Moro dentro da minha montanha azulada, bem em frente ao que resta do mar.   

 

DA REMAÇÃO, DA REMARIA

         Já foi ontem que tudo era. No princípio era um balãozinho vermelho, hoje são panos rasgados e alguma lantejoula que ainda brilha. Ontem era a andança e o peso de correntes marítimas, agora desliza. Foi que um dia larguei o leme, os remos… Fiquei ali: Olhando as ondas à deriva, olhando o sol se pondo. Observei o sol e sua quentura acabando até o entardecer completo. Quando virou noite, antes de olhar pra lua cheia, voltei à superfície das minhas próprias marés. Andar com aquele barco de madeira molhada era enfrentar o oceano. Na verdade eu olhava pela fresta da madeira o horizonte lá adiante. Fixava tanto os olhos nele que só via o sol luzindo na água. Mais nada. O entorno à fresta que eu escolhi pra espiar, eu deixei de lado.  O espaço que emoldurava a visão do sol eram dois pedaços de uma madeira velha em ruínas. Lá fora só a profundidade do mar. Eu sabia que não me afogaria, mas queria ainda sim deixar o barco sem precisar  arriscar a vida em alto mar. Teve uma vez que quase pulei na água. Depois voltei atrás. Por algum tempo também falei uma língua que ninguém ouvia. O mar só prestava atenção nos meus fonemas. Confuso e sóbrio, ele sorria. O mar foi um ‘senhor cidadão’ naquele tempo de “remaria”. Rezava eu, preces e mais preces. Jejuava na base da Ave Maria’. Ancorava a alma na ideia de um milagre como se não soubesse que estar ali no barco já o era. Ocorre que nem todo passeio em alto mar é uma viagem possível. Na verdade nunca é, a não ser naquelas histórias de aventuras piratas onde tripulações inteiras se unem pra colocar o navio no eixo, mesmo assim não se eximindo de sucumbir à tempestades.

DO DESENROLAR DA METÁFORA

            Você leitor deve estar se perguntando que tipo de metáfora é essa e pra que essa ladainha marina… Eu só queria dizer que chegar ao fim de um relacionamento sempre é denso, escuro, uma saída noturna de um lugar em alto mar. Mas que essa saída ainda sim está submersa a um céu estrelado, plausível de lua cheia, luz e calmaria. Queria dizer que deixar alguém pra trás é como largar os remos de um barco e se colocar à deriva novamente. Queria dizer que não é nem triste ou feliz, é um movimento desatinado de voltar à praia e ancorar a alma na montanha. Queria só dizer o como é bom voltar para casa das minhas caminhadas.

Foto dos pés da Bárbara Trelha. Meus pés na praia do Campeche e pedra na praia da Joaquina em Florianópolis- SC
Foto dos pés da Bárbara Trelha.
Meus pés na praia do Campeche e pedra na praia da Joaquina em Florianópolis

PALAVRA

 

      Quando eu tinha oito anos, em uma  tarde normal,                              eu recebi um livro especial….

livro

A cidade era Pelotas, no Rio Grande do Sul. Era ela quem abrigava minha infância. Eu era uma criança curiosa. Era quieta por fora e inquieta por dentro. Era uma menina observadora. Estudava na Escola Estadual Dom Joaquim Ferreira de Mello. Lembro-me que rezávamos todos os dias antes da aula: “Ave Maria cheia de graça…” Era um rito; todos nós em pé, enfileirados ao lado da classe. Muitas coisas acontecem na escola. Lembro claramente da primeira vez que a professora me chamou atenção na sala de aula por eu estar conversando demais. Eu tinha seis anos e senti muita vergonha. Mas era raro eu levar bronca. Sempre fui de fazer o que me pediam direitinho. Até hoje sou assim. Em geral eu cumpria minha função e em paralelo tinha meu mundo de pensamentos que eu pouco  repartia. Ainda hoje, pouco o compartilho com o mundo.

Naquela tarde normal minha turma na escola foi chamada para descer até o salão. Eu estudava no andar de cima e ainda lembro o prazer que eu tinha em descer as escadas. Descia muito rápido e apostava comigo mesma cada vez quem descia mais rápido: ‘pé direito ou pé esquerdo?’ Me sentia muito hábil nos degraus, forte… rápida! No salão, o pessoal de uma editora, distribuía livros acompanhados de rifas. Podíamos levar os livros que escolhêssemos, em quantidade de três por bloco de rifa. Junto de cada trio de livros, a rifa ia junto com intuito de que as crianças vendessem os números. Assim os livros poderiam ficar conosco e, caso não vendêssemos, pagaríamos por eles. Eu escolhi três!  Um deles me chamou mais atenção: Era um livro com balões de fala em branco. As imagens possuíam uma certa narrativa mas o leitor é que criaria a escrita, a história. Vendi as rifas e passei, daquele dia em diante, a levar o livro de balões em branco para a cama. Depois que todos adormeciam, eu pegava um lápis e meu livro- que estavam embaixo das cobertas- e os abria. A insônia – esqueci de dizer- foi minha companheira até eu ficar adulta. Era nessas horas, entre o sono que nunca vinha e a vigília, que eu usava a luz azulada que escapava do quarto dos meus pais, trazida da televisão  por uma vidraça- que eu mergulhava na minha criação. Aquele livro marcou minha infância e de certa forma abriu uma porta. Virou um enorme balão a ser preenchido pela minha fala.  A partir daí, contar coisas e escrevinhar-me passou a ser rotineiro, íntimo, rito de sonho e remédio pra qualquer insônia ou angustia. A partir daí a escrita não conteve mais minha mão e eu passei a existir de forma mais ampla. As coisas das palavras foram tomando proporções cada vez maiores.

   A linguagem  emancipou minha alminha de oito anos e eu, de palavra em palavra,

                                                                                                    me refiz verbo.

Entre Vigília e Sono

   Todos os dias antes de dormir oro em agradecimento. Toda noite envio a Deus minhas indagações.

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Toda noite envio a Deus minhas indagações sobre o porquê de você estar em minha vida e em seguida entrego a um ser supremo o rumo de tudo; ser esse a quem delego os mistérios que minha consciência não responde.

Durante as orações acalmo minha ânsia de controlar a vida e seu fluxo interminável e ansiolítico.

Depois durmo.

Ao acordar, remonto quebra cabeças internos. Não sei porque essa coisa de pensamento metalinguístico me atormenta tanto, ao mesmo tempo que me parece tão pertencente e permanente em mim.

O que falo, às vezes,  é que procuro em nossa relação alguma dialética que forme sentido. Os sentidos começam a esfumaçar. Porém, ao experimentar o esvaziamento dedutivo, surgem uma sequência de rompantes e forças emocionais que me reconectam com você e com a experiência de uma relação supostamente cheia de vida.

Apesar dessas idas e vindas do meu eu, me chama a atenção que meu racionalismo calmo, prudente e justo, começa a ser invadindo muito sutilmente por um ambiente de pessimismo e renegação. Começo olhar as frestas que não vazam, o que não flui. Talvez sejam os temores, mas eles não aparecem como fantasmas. Parecem (seres) sercientes de lucidez e não de terror. É difícil e árduo é quase estático combatê-los.

O que falo nesse sermão, além da tonta- talvez tola- mania de em um devaneio absurdamente literário, me coloca em chamas a palavra. Nada que escrevo parece dar conta do indizível que é aprender novamente amar.

Então sempre escambo com a poesia. A prosa cede, a metáfora se instaura e eu volto a sonhar, rimando com meu indizível desejo de te amar.

Pensar em te deixar;

esse cometido pecado humano.

A terra

Esse pedaço firme de pano

Volúvel;

é o tempo me costurando.

Não entendo como a dualidade se instaura. Houve um tempo em que ela era tortura. Hoje ela só é sombra. Ando a pensar que em toda luz há uma sombra que se joga à superfície. Que em toda luz há uma sombra que se exime de ser o tema principal do conflito. Mas não queria falar de sombras, embora eu recaia nesse tema nostálgico e dolente.

Quando estamos juntos a luz se evidencia.

Talvez porque contrapondo-se à minha inclinação natural à sombra, meus sentidos me conduzem a uma leitura mais clara do meu eu. Porém, acabado o tempo, vejo-me sugada por um temor contínuo. Uma espera mórbida do dia da morte, como se fosse ela anunciada. Acho que resisto ao luto. Acho que resisto ao fechamento de ciclos como quem defende um brinquedo a todo custo, numa grande brincadeira envolvendo muitas crianças, dividindo seus lugares. Fico ansiosa, na imprecisão das minhas angustiadas sensações. Sensações por ver o tempo passar, como se eu não saísse do mesmo lugar. Essa sensação de estaticidade é estúpida. Se eu pudesse romper com esse fluxo de contenção… viveria livre  dos embates dialéticos de dentro de mim.

Chega a noite.

De novo.

Vou dormir.

E em uma fé de fluxo contínuo, agradeço. Aceito as respostas do dia que passou e aceito de um Deus supremo, que a tudo observa com vasta barba branca-azulada, o rumo incerto do destino.

Durmo;

e me acalmo do escuro que havia em mim.

 

 

 

Preciso desses ensaios como preciso de ar

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    Rascunhar-me no vão do
entre vida e morte.  Sou eu, mesmo após devaneios confusos e coesos. Resolvo rascunhar esse início neste breve ensaio. Este texto inaugura esta página. Este lugar não me soa virtual, embora esteja inscrito no vão digital do mundo. Ele ainda preserva em si a natureza viva da minha escritura.

Meu costume de ler pessoas despeja sobre minhas folhas em branco, uma escrita viva e constante. Leia Mais