Ainda possuo alguma liberdade de ir e vir; tenho uma boa cama, lençóis macios para dormir e bom ânimo.

    Atravessar a fronteira do meu país foi mais fácil que pensei.

    Não falo da fronteira territorial mas da ideia de “vencer a fronteira”. Como uma espécie de guerrilheiro, me coloco à prova da coragem para atravessar o terrritório da cultura e da língua. Ratifiquei o que eu já sabia: Minha facilidade de me comunicar transcende o idioma e as diferenças culturais.

    Montevidéo possui uma arquitetura velha, cheia de oponência e beleza. As pessoas aqui me parecem mais ensimesmadas e é como se houvesse uma certa resignação usada pelas pessoas ao conversarem. O tom de voz  que escuto nas conversas que tento espionar é apenas o necessário para alcançar o interlocutor alvo, o que me frustra.

Comprei um livro infantil 

        Me identifiquei com o tema de um livro infantil que achei em uma livraria. Gostei da poética da história, dos desenhos…

Ao ler estranhei duas palavras que, à princípio, não encaixavam na sentença. “Pena” e “estrujar”. Eram temas chave para que eu entendesse o fim da narrativa, que era um tanto quanto lírica e metafórica . Resolvi perguntar ao vendedor de livros da livraria que ficava bem no meio do saguão do Teatro Solís. “Pena”, segundo ele seria uma espécie de tristeza misturada com saudade. Já ” estrujar”, esmagar e oprimir por dentro.  Além de entender a história me comovi com o singelo desfecho e comprei o referido livro por 440 pesos.

      Antes de entrar no vistoso teatro atrás de ingressos já esgotados e antes de encontrar o livro sobre o mar de lágrimas de Emma, passei por uma praça.  Havia um evento público, algo natural como uma batalha de rap no Brasil. Nesse evento, velhos e velhas dançavam tango como seus pares ou com quem quisesse dispor de uma dança descontraída. Deixei-me dançar. Dei-me a um senhor que me conduziu com de forma leve e eficiente. Ao sair da dança me direciono ao bonito teatro e tenho um encontro: Prólogo do livro que eu viria a comprar…

       O encontro

Uma mulher de meia idade, sem dentes com um cachecol amarelo me aborda na praça em frente ao teatro. Pede moedas para comer e dar comida ao seus filhos. Pede muitas vezes ao senhor ao meu lado e demora a olhar para mim. Após muitas recusas do senhor, ela olha para mim com olhos cheios de lágrimas. Eu, acostumada ao ritual de pedintes no Brasil, efetivo o o ato da recusa. Mas a mulher de meia idade e cachecol mantinha seus olhos grudados em mim e ocorreu-me oferecer-lhe algo.  Concomitante à minha intenção de não ignorá-la, um resto de consciência me dizia que moedas não a tirariam daquele estado, não a tirariam dali e tão pouco colocariam dentes em sua boca. Resolvi num impulso sincero e autêntico, com meu portunhol raso, pedir permissão para dar a ela uma abraço.  Com cuidado e delicadeza a abracei e ela então, deixou-se abraçar. Diferente dos pedintes daqui, ela tinha um perfume suave e gostoso. Era uma mulher magra, limpa e não só aceitou o abraço, como deixou sua cabeça cair sobre meu ombro e chorou muito. Procurei não racionalizar aquele momento, afinal eu estava ali para dar e não para ler o que acontecia. Senti seu calor, seu corpo magro e meu ombro molhar. Em determinado momento, ela suspira e  digo ” ficará tudo bem…” Ela arrisca um último cochicho e diz que tem câncer. Se esse dado era verdadeiro não sei. Sei que seu corpo sendo abraçado por mim era extremamente real. Concentrei-me nisso fui embora sem nada a dizer.

    O livro que comprei em seguida falava de um mar de lágrima e, estranha coincidência: Acabava com um econtro e um abraço.

Só agora 

Ao escrever sobre esses meus breves passos

      Para além da fronteira

é que entendi o acaso

Ser o livro a metáfora em concreto estado

E do meu encontro

estar de certa forma,

      na história já narrado.

Montevidéo, 4 de Março. Praça, Teatro, abraço.

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